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Portal Folha de S. Paulo

Publicado em 18/08/2023 - 10:21 / Clipado em 18/08/2023 - 10:21

A negociata do livro digital paulista



Maria Angélica Minhoto
Soraya Smaili
Pedro Arantes

 

Imbróglio dos livros didáticos envolve guerra ideológica, negócios e patrimonialismo

 

No início deste mês, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo comunicou a não adesão da rede estadual paulista ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que disponibiliza livros para todas as escolas públicas brasileiras com verbas da União, via Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (autarquia do MEC). Em seu lugar, no ano que vem, os estudantes contarão apenas com o "material próprio" em formato digital para o ensino médio e os anos finais do ensino fundamental, adquiridos sem licitação.

Essa decisão foi recebida por educadores e especialistas com severas críticas, além de render um inquérito no Ministério Público Estadual (MPE) para investigar detalhadamente a decisão do governo. A deliberação também vai na contramão das recomendações da Unesco e do que acontece em países super desenvolvidos, como a Suécia, que abriu mão desse caminho por ter identificado, entre outra coisas, associação entre o uso de materiais digitais e a queda no desempenho das crianças em leitura, problemas de saúde relacionados ao aumento do tempo em frente das telas, dificuldade de participação dos pais e responsáveis no auxílio às tarefas escolares e evidências de que o livro físico impacta positivamente o desenvolvimento cognitivo das crianças e adolescentes.

Em vista da grita geral, a gestão Tarcísio recuou, mas pouco. Desistiu de adotar exclusivamente a versão digital dos livros. Apresentou como alternativa, questionável para dizer o mínimo, a possibilidade de impressão do material digital para aqueles estudantes que preferissem o formato impresso, com a justificativa de garantir o conteúdo "coerente com o currículo paulista".

Nesta semana, o Secretário da Educação, Renato Feder, recuou um pouco mais: anunciou que os livros digitais seriam impressos para todos os estudantes, ainda que não seja desconhecida a falta de equipamentos tecnológicos e de suprimentos (como toner e papel) nas escolas da rede. O mau uso de recurso público aí é evidente: ao invés de impressão em grande escala em gráficas especializadas, fazer imprimir nas impressoras combalidas de cada escola o material didático é uma afronta ao princípio de eficiência e economicidade da administração pública.

 

Mas, o que é o PNLD, programa esnobado pelo governo paulista?

Um dos maiores programas de incentivo à Educação Básica, o PNLD tem a finalidade de avaliar e tornar disponíveis obras didáticas, pedagógicas e literárias, além de outras formas de apoio às instituições de ensino. Para que um livro seja aprovado pelo Programa, é necessário que seja inscrito e avaliado por coordenações do MEC, a partir de Comissões Técnicas específicas compostas por especialistas das diferentes áreas do conhecimento. Submetidos a processos avaliativos rígidos e sólidos, a qualidade do livro é aferida antes de ser disponível para os estabelecimentos educacionais.

Com isso, a estrutura do PNLD tem contribuído há mais de 20 anos para a melhoria da qualidade dos materiais didáticos e paradidáticos que se destinam a toda a educação básica. No corrente ano, o Programa beneficiou quase 31 milhões de estudantes e seus professores, nas redes públicas estaduais, municipais e federal, com livros didáticos e literários.

Além de livros físicos comuns e em braile, o Programa também disponibiliza os volumes em formato digital e interativo, manuais para professores e EPUB para a população com cegueira, baixa visão e dislexia. Para 2024, foram aprovadas 92 coleções diferentes, nas áreas de Artes (12), Ciências (14), Educação Física (1), Geografia (16), História (14), Língua Inglesa (11), Língua Portuguesa (11) e Matemática (13). Essas coleções são de livre escolha dos professores e equipes pedagógicas das escolas, sintonizadas assim com o projeto político-pedagógico das respectivas instituições.

Cada etapa da educação básica é atendida integralmente pelo Programa em um ano: a educação infantil foi em 2022, os anos iniciais do ensino fundamental no ano corrente, os anos finais do ensino fundamental será em 2024 e o ensino médio no ano seguinte. Quando não atendidos em um determinado ano, as diferentes etapas recebem livros do Programa a título de complementação.

Ao lado das formas de incentivo ao livro didático, sabe-se da importância da infância e da adolescência para a construção de hábitos saudáveis, como a prática da leitura. A exploração da materialidade do livro, a criatividade, a imaginação e a própria aprendizagem e gosto pela leitura ocorrem por meio deste objeto. Mais do que uma decodificação de sinais, é no ato da leitura que se desenvolve a habilidade para compreender os significados de um texto e sua significação simbólica. No Brasil, o processo de formação da leitura e do leitor se dá fundamentalmente no âmbito escolar, com a mediação dos professores e com o acesso aos livros existentes nas escolas.

Diante disso, é de se questionar os motivos pelos quais o atual governo de São Paulo abriu mão de um Programa, há anos patrocinado pelo governo federal, e que, portanto, não impacta o orçamento do Estado, para usar parte dos próprios recursos adquirindo material digital que adicionalmente deverá ser impresso, multiplicando o custo para o uso do mesmo recurso.

Além disso, não é claro se ou como esse "material próprio" adotado passa por processos de avaliação, como ocorre no PNLD, qual sua qualidade e alinhamento com os projetos pedagógicos. De um lado, o governador Tarcísio investe na guerra ideológica, dando a entender que o material produzido nacionalmente e distribuído pelo governo federal "de esquerda" implicaria em doutrinação ou todas as demais fantasias de pânico moral que movimentam a base de extrema-direita e que já alimentaram o Escola sem Partido. A guerra aos livros é uma das características não apenas do bolsonarismo, mas do nazifascismo.

De outro lado, embora a justificativa da atual gestão reivindique a defesa da qualidade da educação paulista e a coerência de seu currículo, é possível perceber, pelo alto volume de recursos implicados (que podem chegar a R$ 15,21 milhões) na compra desse material e equipamentos para acessá-lo, envolvendo mais de 5.300 escolas e 3,5 milhões de alunos, que nessa decisão estão cada vez mais visíveis os interesses econômicos e, mais que isso, patrimonialistas.

Considerando que o uso do material digital depende de equipamentos, como celulares, tablets e notebooks, isso despertou o interesse da Procuradoria-Geral de Justiça de São Paulo, que deu início a uma investigação sobre um possível conflito de interesses do atual Secretário da Educação. Uma de suas empresas, a Multilaser, que vende esse tipo de equipamento, fechou contratos milionários com a Pasta no final do ano passado, quando Renato Feder já havia sido confirmado para assumir o cargo. Na noite desta quarta-feira, após pedido de parlamentares, a Justiça determinou em decisão liminar que o governo volte imediatamente ao PNLD.

Enquanto isso, o cidadão paulista assiste atônito ao imbróglio, imaginando o que está por vir na maior rede de educação brasileira. A tentativa de pôr fim aos livros físicos nas escolas, de ceifar a liberdade de escolha dos professores e os dispêndios milionários e dispensáveis do orçamento paulista, além de representarem prejuízos às nossas crianças e jovens, mostram claramente as digitais da nova gestão: a guerra ideológica e os negócios ganham ainda mais primazia sobre a rede pública de Educação Paulista.

 

https://www1.folha.uol.com.br/blogs/sou-ciencia/2023/08/a-negociata-do-livro-digital-paulista.shtml

 

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