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Publicado em 09/02/2023 - 08:00 / Clipado em 10/02/2023 - 08:00

"Política de inclusão é estratégia para mudança cultural", diz diretora de Diversidades da USP


Ana Elisa Bechara, vice-diretora da Faculdade de Direito (FD) e uma das únicas quatro professoras titulares da SanFran, é a nova diretora de Mulheres, Relações Étnico-Raciais e Diversidades da Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento da USP; órgão prepara planos de equidade racial e de gênero visando mudança cultural

 

 

Texto: Tabita Said

 

Criada em maio de 2022, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) da USP é a única pró-reitoria da Universidade que não trabalha diretamente com ensino, pesquisa ou extensão. As chamadas atividades-fim da Universidade, no entanto, são permeadas por singularidades e relações sociais complexas. No atual momento de reconhecimento público das diferenças, a Universidade se depara com situações de desigualdade expressas na comunidade universitária. “Estamos falando de um contexto de convivência que vai me permitir desenvolver as minhas atividades, gerando inclusive alterações na produção e na agenda de pesquisas”, afirma Ana Elisa Liberatore Silva Bechara, diretora de Mulheres, Relações Étnico-Raciais e Diversidades da PRIP. Bechara diz que o estabelecimento de uma política de inclusão deve passar por planos concretos de equidade étnico-racial e de gênero. 

No cargo há menos de uma semana, a penalista é professora titular da Faculdade de Direito (FD) da USP, no Largo de São Francisco, onde também cumpre a função de vice-diretora. “Temos um importante papel. Quando conseguirmos criar políticas e mudar uma cultura, seremos referência e isso se refletirá em outras instituições”, afirma. Para cumprir este ideal de ser um farol para a sociedade, porém, ainda são necessárias muitas mudanças internas. Apenas 15% de todos os docentes da FD são mulheres. O número é ainda menor quando se fala em topo de carreira. “De 40 professores titulares, nós somos quatro mulheres, só. E este ano, duas das quatro titulares se aposentarão. É um problema histórico da Faculdade de Direito e eu me vi na obrigação de carregar essa bandeira”, conta. 

Ela afirma que, embora seja uma penalista e não uma pesquisadora das questões de gênero, passou a se dedicar ao tema também a pedido da comunidade, que não se via representada em espaços de tomada de decisão. Com ouvidos atentos ao que chega, ela afirma não querer apenas receber e devolver demandas, mas levar a discussão às reuniões de Congregação e rumo a uma política acadêmica estendida a todos os campi. A professora se diz otimista com o momento de visibilidade de condições e problemas que sempre existiram, mas antes eram invisíveis. “Se você, por exemplo, é mulher ou transexual e tem uma situação na Universidade, era uma questão pessoal sua. Um problema seu. Se você é deficiente, se você é negra e é tratada de outra forma, até pouquíssimo tempo atrás, era visto assim: não era uma questão institucional. Não era uma preocupação da instituição”, diz.

Ciente de que não reúne toda a representatividade que o cargo exige em si mesma, a nova diretora da área de Diversidades da PRIP se reuniu com coletivos da Universidade para desenhar, coletivamente, o que sua função exige: “Muita capacidade de interlocução e organização, saber ouvir mas fazer a costura política, para trazer essas pessoas para dentro da atuação”. Para isto, ao Jornal da USP, ela explica que pretende trabalhar com grupos de trabalhos representativos das diversidades. “Nada que é personificado funciona bem. Ainda que tenha uma pessoa extraordinária na função, sozinha ela não terá uma visão apropriada do problema.” 

O resultado do desenho coletivo foi a criação de um plano de atuação: o primeiro braço é o que a diretora chama de “cuidar das pessoas e responder a demandas específicas”; o segundo é conhecer a realidade. “E não se trata só de coletar dados, mas envolver as pessoas mais interessadas nas soluções. Ouvir a realidade e trabalhar junto com ela.” Por fim, o terceiro e último braço é o desenvolvimento de políticas estratégicas para induzir a uma mudança cultural. “Nós vamos lançar, no próximo mês, um edital com todo o apoio do reitor e da vice-reitora, de 50 bolsas de pós-doutorado só para pesquisadoras e pesquisadores negros. Isto significa que estes serão os futuros docentes negros da Universidade”, comemora. 

Em 2021, 2,3 milhões de estudantes abandonaram a faculdade, desistindo da formação no meio do curso superior. Um levantamento do centro SoU_Ciência, da Unifesp, revelou que no último ano da série histórica (2021) a taxa de evasão chegou ao patamar de 38,8% nas Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, o que equivale a uma perda de 2,19 milhões de estudantes. Nas IES públicas, a perda afetou 165 mil graduandos, com uma taxa de evasão de 9,4%. Outro dado destacado pelo centro é a média salarial de brasileiros com diploma de nível superior. Estes ganham, em média, 2,5 vezes mais do que aqueles com diploma de nível médio. É a maior diferença salarial observada entre os 46 países analisados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico.

A série histórica mostra um comportamento relativamente estável para as IES públicas, que tiveram uma perda de 11% de concluintes em 2021. Já nas IES privadas, se o número de ingressantes em 2021 é 40% maior que o registrado em 2016, o número de concluintes aumentou apenas 20% – Fonte: SoU_Ciência

Na USP, o Programa de Inclusão Social (Inclusp), criado em 2006, ampliou a presença de estudantes da rede pública em seu corpo discente, chegando a ter 30% das aprovações no exame vestibular oriundas de escolas públicas. Em 2017, adotou a política de cotas e, atualmente, implantou o Enem USP, possibilitando aos vestibulandos usar a nota do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para concorrer a uma das 2.917 vagas disponíveis nesta modalidade para os cursos de graduação. Das 8.230 vagas oferecidas pela Fuvest no vestibular 2023, 4.961 foram na modalidade de ampla concorrência, 2.173 vagas foram reservadas para candidatos de escolas públicas e 1.096 para candidatos pretos, pardos e indígenas.

“O povo brasileiro merece oportunidade e portas abertas. Meus parabéns aos formandos da 1ª turma de cotistas negros da Faculdade de Direito da USP. Desejo uma carreira de muito sucesso a vocês”, afirmou o presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva em sua conta do Twitter após a divulgação da foto de formatura da 191ª turma da FD. Também a primeira de cotistas étnico-raciais da história da instituição, que tem quase 200 anos. “É o legado vivo de Luiz Gama”, afirmaram os integrantes do Centro Acadêmico XI de Agosto, da faculdade, sobre os 35 estudantes da turma que teve como oradora do juramento a advogada Victória Dandara da Silva Toth, a primeira aluna travesti da tradicional faculdade a fazer a leitura de compromissos.

 “Não é uma conquista só da Faculdade de Direito, é da Universidade como um todo. [Essa foto] acabou ganhando alguma repercussão, talvez por conta desse conservadorismo histórico da faculdade. Então a imagem fica muito marcante”, afirma Bechara, destacando que o ingresso mudou a cara da Universidade, mas veio carregado de muitas dúvidas. “Algumas muito ingênuas: será que a formação da Universidade vai ter menor qualidade? Será que essa turma acompanha os outros? E o acompanhamento dos alunos cotistas revelou que eles são, no mínimo, iguais aos não cotistas em performance; a média é no mínimo igual, senão superior à dos alunos não cotistas”, lembra ela, referindo-se a uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos da Metrópole da USP, divulgada pela Folha de S. Paulo. A pesquisa revelou que o desempenho dos cotistas e dos demais alunos difere, no máximo, 1,2 ponto e melhora progressivamente ao longo do curso.

“Tem uma série de elementos, de fatores sociais, que se intercomunicam na vida de qualquer um de nós. Então, quando a gente fala dessas três vertentes: gênero, relações étnico-raciais e as deficiências, a gente está falando de três elementos interseccionais que vão interferir muito diretamente na vivência do indivíduo. E aí a Universidade tem que saber olhar para essas coisas”, aponta a diretora de Diversidades da PRIP.

 

Revolução Silenciosa

Não é só uma questão de reparação histórica. Após dez anos da implantação da Lei de Cotas, a diversidade de alunas e alunos trouxe consigo uma dose de realidade para dentro da Universidade. “[Eles] trouxeram problemas sociais em toda sua complexidade e isso mudou a dinâmica, o nível de perguntas feitas em sala de aula. Hoje, nós temos até disciplinas, grupos de pesquisa e de extensão que só existem porque as questões que hoje eles estudam e trabalham foram aventadas a partir da entrada dessas pessoas. Questões que antes não eram nem sabidas pelo público de elite da Universidade. Isso causa uma revolução no centro de produção de conhecimento”, analisa Bechara.

Ela acredita que os próprios alunos não cotistas passaram a ter uma vivência mais enriquecedora. E que, por meio dessa interação, a Universidade conseguirá se envolver com os problemas que de fato existem na sociedade de maneira mais responsiva. “Principalmente quando a gente fala em cursos como o de Direito, de Medicina, em que a formação se dá por uma aplicação muito concreta do aprendizado. Como é que um juiz com uma formação restrita vai julgar outras pessoas? A partir de seus próprios parâmetros. E hoje a gente está conseguindo formar pessoas que estão espelhando a diversidade social. Isso gera uma revolução na sociedade, uma revolução silenciosa.” 

Durante sua experiência enquanto membra da Comissão de Pós-graduação, a professora notou que os alunos cotistas não tinham as mesmas oportunidades socioculturais que os demais estudantes. “Poder participar das festas, dos eventos culturais junto com a comunidade, significa formar redes de conhecimento. E a gente vê que boa parte da formação dos alunos se dá nessa interação acadêmica, que ultrapassa em muito a sala e o horário de aula”, diz.

Para além da diversão, a questão se desdobra na internacionalização da Universidade, que passa pelas oportunidades viabilizadas pelas unidades a seus estudantes. Atualmente, a USP mantém mais de 450 convênios com universidades do mundo inteiro, mas, além da língua, outro impedimento está nas condições econômicas de se manter em um país do exterior. “Então você imagina que eu passo em um vestibular concorrido, aprendo a falar alemão, lindamente, pela internet, ganho a vaga de intercâmbio… conquista atrás de conquista. Mas é um constrangimento que um estudante precise trabalhar como diarista em outro país para se manter. Não que fazer faxina seja indigno, mas se a gente está propiciando um intercâmbio acadêmico, temos que pensar nas condições de subsistência e de desempenho deste aluno lá fora”.

Apesar da abertura para o ingresso de estudantes de escolas públicas e via cotas, a professora menciona a preocupação em garantir que estes permaneçam e concluam seus estudos. Além disso, ela lembra daquelas pessoas que, independentemente da forma de ingresso, necessitam de espaços mais acolhedores e responsáveis, para que tenham condições dignas em suas jornadas acadêmicas. “A gente não imagina o nível de dificuldade dessas pessoas, então isso cria para a Universidade um dever de pensar formas de permanência. Como ela vai ficar, morar, comer? Ter acesso a material, locais de estudo, internet? Essa pessoa não tem só que permanecer, ela precisa se sentir parte da Universidade”, afirma.

 

 

Primeiros passos

Além de prever ações de formação sobre gênero para servidores, estudantes e docentes, a professora menciona o compromisso em criar um protocolo uniformizado de atendimento para responder às violências relatadas à PRIP. “Não pode ser uma resposta intuitiva, ou depender da sensibilidade de quem atender a vítima. Os diversos, dentro da enorme gama de diversidades, não são minoria no sentido numérico, mas no sentido de poder. E, portanto, se sentem muito desconfortáveis em se expor”, lembra a diretora. 

Bechara já se reuniu com o Núcleo de Violência de Gênero da Defensoria Pública e deve escutar outras instituições, além de utilizar os dados coletados no primeiro questionário realizado pela PRIP para conhecer melhor a comunidade uspiana. Para Bechara, este foi um importante passo da área “para desmistificar a realidade por meio de dados concretos e por meio do diálogo com os coletivos”. A partir deste panorama, a ideia é realizar um trabalho conjunto com a área de Saúde Mental e a área de Direitos Humanos, também da Pró-Reitoria. “A pessoa violentada seguramente tem um sofrimento mental importante e isso é gatilho para muitas coisas. E quando eu falo de violências, trata-se de violações de direitos humanos”, aponta.

Com relação às questões de gênero, a professora menciona sua preocupação para a delicadeza do assunto, desde o que chamou de “violência latente” até o seu extremo. “Essa violência de gênero é uma cultura no ambiente acadêmico. Vem desde essa violência mais simbólica, que te mostra que na verdade você não deveria estar lá e que você está descumprindo outro papel social: do cuidado e do lar, até a violência física, aí incluída a sexual. Toda essa gama existe na Universidade porque existe na sociedade”, diz. Ela acredita que trabalhar estas questões para além – mas também – pela via punitiva, deve gerar a naturalização da diversidade, e não da exclusão.

 

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