Publicado em 23/09/2022 - 08:07 / Clipado em 23/09/2022 - 08:07
O direito à ciência
Onda pró-ciência precisa alcançar novo patamar, como direito fundamental
Maria Angélica Minhoto
Soraya Smaili
Pedro Arantes
SÃO PAULO (SP)
Temos estudado e divulgado o que as universidades brasileiras fizeram durante a pandemia da covid-19, o quanto produziram cientificamente e trouxeram soluções para um dos momentos mais dramáticos da história e, em particular, do nosso país, nesta trágica ocasião governado por negacionistas.
Também mostramos como as universidades públicas, institutos de pesquisa e cientistas se dedicaram à comunicação e divulgação nesse período. Houve um grande movimento para apresentar à sociedade as informações importantes e confiáveis sobre o coronavírus e as vacinas, combatendo as fake news e fake science que teimaram em nos assolar.
E não se limitando a apenas produzir conhecimento e levar informação, as universidades públicas atuaram junto com o SUS, com governos, entidades e movimentos sociais, ampliando a assistência, qualificando as ações, trazendo elementos de pesquisa em tempo real, prestando auxílios diversos solidariamente – apesar dos orçamentos cortados, em cenário de guerra.
A ligação, solidariedade e aliança entre pesquisadores, estudantes e a sociedade cresceu e foi fundamental para mostrar e aproximar a ciência e as universidades, especialmente as públicas, do grande público. Potencializados pela mídia e pela necessidade de iniciativas que suprissem a falta da liderança do Governo Federal nas políticas públicas de saúde, educação e ciência e tecnologia, o sentimento pró-ciência cresceu, transformando-se em uma grande onda contra o obscurantismo. Além disso, cresceu o reconhecimento e valorização dos cientistas na sociedade, que passaram a ser considerados por 41% da população como os profissionais mais confiáveis no país, fruto desse movimento e do esforço de muitos.
Estamos orgulhosos de termos colaborado para que a ciência possa cumprir esse papel cívico, que é mais um dos muitos que compõem a função social da Universidade Pública brasileira. E vemos cada vez mais pessoas interessadas nas ciências, em todas as áreas: das ciências da saúde às ciências econômicas, das ciências jurídicas às da informação, das ciências da vida às da terra, das ciências exatas às humanas.
No entanto, ainda temos muito a caminhar para que o "direito à ciência" se dissemine amplamente e que seja acessível e garantido a todos e todas. Por isso, atualmente temos que compreender o acesso à ciência como um direito humano essencial, que compõe os elementos do chamado direito pleno. Conquistamos o direito à educação, à cultura e à saúde, embora venham sendo tão atacados nos últimos anos, em particular pelo atual governo. Teremos que atuar para retomar o exercício pleno desses direitos fundamentais nos próximos anos e ao mesmo tempo definir e construir o direito à ciência como integrante do próprio direito à vida, ao conhecimento que garante o bem-estar e a qualidade de vida digna para todos e todas.
Parafraseando nosso querido mestre, Antonio Candido, tal como a literatura, a ciência corresponde a uma necessidade universal do ser humano, porque fornece meios para o entendimento do mundo e nos organiza, nos liberta do caos, dos mitos e, portanto, nos humaniza. Em segundo lugar, a ciência (como a literatura) "pode ser um instrumento consciente de desmascaramento, pelo fato de focalizar as situações de restrição dos direitos, ou de negação deles, como a miséria, a servidão, a mutilação espiritual. Tanto num nível quanto no outro ela tem muito a ver com a luta pelos direitos humanos" (em O Direito à Literatura).
No Brasil, temos um sistema público de instituições de ensino superior que está em vigor e que é fruto da reforma universitária iniciada antes do Golpe de 1964, tão bem induzida por Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro, Ernani Fiori e uma geração de professores e estudantes ativistas naquele momento. Em que pese a necessidade de reflexão sobre essa reforma interrompida pelo golpe e seus atuais desafios, mudanças que poderão ser formuladas no futuro, constituiu-se um sistema que resistiu a ditaduras, intempéries governamentais (ex. Collor de Mello e Bolsonaro), bem como altos e baixos da política de financiamento (ex. FHC, Temer e segundo governo Dilma).
O modelo trouxe a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão, sendo que a pesquisa científica passou a ser desenvolvida em larga escala dentro dos programas de pós-graduação, também diretriz da mesma reforma. Isto explica em parte por que cerca de 80% das pesquisas em nosso país são realizadas nas universidades, em especial nas universidades públicas constituídas em acordo com o programa resumido por Darcy Ribeiro em seu texto "Princípios reitores da Reforma Universitária" (no livro A Universidade Necessária).
Embora tenhamos muitos pesquisadores nas universidades e programas de Iniciação Científica para os nossos estudantes de graduação e até para os de ensino médio, é preciso fazer muito mais para incluirmos os nossos jovens, crianças e adolescentes, desde cedo, no maravilhoso mundo das ciências. A formação científica no Brasil está muito aquém do que seria condizente com um processo de formação ampla, cidadania plena e desenvolvimento nacional com soberania.
A compreensão das ciências e dos seus métodos não só pode auxiliar a combater as mentiras divulgadas, como pode também auxiliar no exercício da lógica e da construção de soluções a partir de perguntas bem formuladas, na obtenção de resultados e na ampliação do acesso a seus benefícios. Junto com a reflexão a partir das humanidades, é possível fazer com que o conhecimento técnico se transforme em um agente transformador para a sociedade como um todo. Trata-se de uma mudança de patamar, para uma população que pensa e que distingue o que é o melhor para o seu desenvolvimento, em todos os níveis.
Por isso, não podemos mais falar em popularização da ciência como um bônus ou como um apêndice da estrutura de formação ou da produção científica. É preciso falar em direito à ciência, tornando-a acessível e levando-a onde o povo está. A educação de qualidade e a conscientização sobre a ciência, serão fontes de conhecimento e compreensão do mundo, serão também fonte de equidade e emancipação intelectual, para um povo que precisa mais uma vez superar o obscurantismo. Daremos um basta às trevas. Aliás; já estamos fazendo isso.
https://www1.folha.uol.com.br/blogs/sou-ciencia/2022/09/o-direito-a-ciencia.shtml
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