Publicado em 06/09/2025 - 09:36 / Clipado em 08/09/2025 - 09:36
Álcool: por que a bebida já aumenta o risco de câncer a partir de um drinque diário? Especialista explica os mecanismos
Não há mais desculpas para não encarar o fato, comprovado cientificamente; entenda como a bebida age no organismo aumentando o perigo
Por Pranoti Mandrekar , Em The Conversation*
Nosso corpo paga um imposto ao álcool, seja ele consumido regularmente ou ocasionalmente. Essa substância tem efeitos nocivos sobre a saúde, afetando numerosos órgãos, do cérebro ao sistema gastrointestinal, passando pelos pulmões, os músculos (incluindo o coração) e o sistema imunológico. Sabe-se hoje que o álcool provoca, em especial, cânceres.
Nos Estados Unidos, o álcool é responsável por cerca de 100 mil casos de câncer e 20 mil mortes ela doença a cada ano, o que faz dele a terceira causa evitável de câncer. A título de comparação, os acidentes de trânsito relacionados ao álcool causam cerca de 13.500 mortes por ano no país.
Os cientistas suspeitavam, desde os anos 1980, que o álcool pudesse provocar câncer. Estudos epidemiológicos mostraram, desde então, que o consumo de álcool aumenta o risco de cânceres da cavidade bucal, da garganta, da laringe, do esôfago, do fígado, do cólon e do reto, assim como de mama. Outros trabalhos revelaram uma associação entre consumo crônico ou alcoolização pontual e câncer de pâncreas.
Em 2000, os responsáveis pelo National Toxicology Program dos Estados Unidos concluíram que o consumo de bebidas alcoólicas devia ser considerado como cancerígeno comprovado para o ser humano. Em 2012, o Centro Internacional de Pesquisa sobre o Câncer (CIRC), agência especializada em câncer da Organização Mundial da Saúde (OMS), classificou o álcool entre os cancerígenos do grupo 1. A presença de uma substância nessa categoria, a mais elevada na classificação do CIRC, indica que existem provas científicas suficientes para concluir que ela causa cânceres no ser humano. Os Centers for Disease Control and Prevention (CDC), dos EUA, e os National Institutes of Health (NIH) também concordam em dizer que as provas são conclusivas: o álcool está realmente na origem de diferentes tipos de câncer.
Além disso, nos Estados Unidos, as autoridades de saúde ressaltam que mesmo pequenas quantidades de álcool – menos de um copo por dia – aumentam o risco de câncer.
Apesar de tudo, muitos cidadãos não sabem que o álcool causa cânceres. Em 2019, menos de 50% dos adultos americanos tinham consciência dos vínculos entre consumo de álcool e risco cancerígeno.
Na França, a ligação entre álcool e câncer também é subestimada por uma parte da população. A pesquisa "Baromètre cancer" de 2021, realizada pelo Instituto Nacional do Câncer, revelou que 38,6% das pessoas interrogadas pensam que “são sobretudo os destilados que aumentam o risco de câncer”, enquanto 23,5% estimam que “de maneira geral, beber um pouco de vinho diminui o risco de câncer em vez de não beber nada”, ainda que o “paradoxo francês” esteja hoje desacreditado.
Como pesquisadora, estudo os efeitos biológicos do consumo moderado e de longa duração de álcool. Minha equipe trabalha para elucidar os mecanismos pelos quais o álcool aumenta o risco de câncer, em particular por meio dos danos causados às células imunológicas e ao fígado.
Como o álcool provoca o câncer?
O câncer surge quando células começam a crescer de maneira descontrolada no organismo. O álcool pode favorecer a formação de tumores ao danificar o DNA, provocando mutações que perturbam a divisão e o crescimento celulares.
Os pesquisadores identificaram vários mecanismos que podem explicar como o consumo de álcool leva ao desenvolvimento de cânceres. Um relatório publicado em 2025 pelo cirurgião-geral dos EUA (o principal porta-voz federal de saúde pública) registrou quatro vias principais pelas quais o álcool pode causar câncer:
- o metabolismo do álcool,
- o estresse oxidativo e a inflamação,
- as alterações dos níveis hormonais,
- as interações com outros cancerígenos (como a fumaça do tabaco).
A expressão “metabolismo do álcool” – a primeira via pela qual essa substância pode provocar cânceres – designa os processos pelos quais o organismo degrada e elimina o álcool. Uma vez ingerido, este sofre, sob o efeito de diversas enzimas, transformações químicas que vão permitir sua eliminação (diz-se que ele é “metabolizado”). O primeiro subproduto dessas reações é o acetaldeído, uma substância também classificada como cancerígena. Os cientistas mostraram que certas mutações genéticas podem levar o organismo de alguns indivíduos a decompor o álcool mais rapidamente, acarretando níveis aumentados de acetaldeído.
A segunda via pela qual o álcool aumenta o risco de surgimento de câncer envolve outras moléculas nocivas, chamadas “radicais livres”. O álcool pode desencadear a liberação dessas moléculas quimicamente muito reativas, que danificam o DNA, as proteínas e os lipídios das células por um processo chamado de “estresse oxidativo”. Meu laboratório mostrou que os radicais livres resultantes do consumo de álcool podem influir diretamente na maneira como as células sintetizam e degradam as proteínas, levando à produção de proteínas anormais que mantêm uma inflamação propícia à formação de tumores.
O risco de câncer pode também ser aumentado pelo álcool de uma terceira forma, em razão da capacidade dessa substância de modificar os níveis hormonais. Sabe-se que um consumo moderado de álcool pode não apenas aumentar os níveis de estrogênios, mas também favorecer a continuidade do consumo. Ora, trabalhos mostraram que o risco de câncer de mama pode ser aumentado pelo nível de estrogênio. O álcool também amplifica o risco de câncer de mama ao reduzir os níveis de vitamina A, a qual regula os estrogênios.
Por fim, o álcool aumenta o risco de câncer ao interagir com outras substâncias cancerígenas. Sabe-se, por exemplo, que as pessoas que bebem e fumam apresentam um risco aumentado de desenvolver um câncer da boca, da faringe e da laringe. Isso ocorre porque o álcool facilita a absorção pelo organismo dos cancerígenos contidos nos cigarros e nos cigarros eletrônicos.
Qual dose de álcool é segura?
Se você bebe álcool, talvez já tenha se perguntado se existe uma dose mínima que permita um consumo sem risco. A resposta dos clínicos e dos cientistas pode não agradar: o consumo de álcool nunca é isento de risco.
O risco de câncer aumenta desde o primeiro copo e cresce com a quantidade consumida, qualquer que seja o tipo de bebida alcoólica ingerida.
Nos Estados Unidos, os CDC, o National Institute on Alcohol Abuse and Alcoholism e o girurgião-geral preconizam não ultrapassar um copo por dia para as mulheres e dois copos para os homens.
O consumo de álcool é, portanto, uma causa de câncer altamente evitável.
Não existe, contudo, até o momento, método para determinar o risco individual de desenvolver um câncer ligado ao álcool. O perfil genético próprio de cada um, o modo de vida, a alimentação e outros fatores podem influir na propensão do álcool a levar à formação de tumores. Uma coisa é certa: reconsiderar seus hábitos de consumo pode contribuir para proteger sua saúde e reduzir seu risco de câncer.
* Pranoti Mandrekar é professora de Medicina na UMass Chan Medical School, em Massachusetts, nos Estados Unidos
*Este artigo foi republicado de The Conversation sob licença Creative Commons. Leia o original.
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