Publicado em 18/07/2025 - 10:01 / Clipado em 18/07/2025 - 10:01
'O médico não é um Deus': especialista em câncer fala da experiência de passar pelo tratamento contra a doença
Hematologista Vanderson Rocha contou ao GLOBO como foi estar no papel do paciente
Por Vanderson Rocha* — São Paulo
Em agosto do ano passado tive uma diarreia e fiz uma tomografia. Lembro bem, foi no Dia dos Pais e não pude visitar o meu. Fiquei internado, e então descobriram que eu tinha um tumor, mas àquela altura não sabíamos se era benigno ou maligno. Por conta da febre que eu tinha, só foi possível fazer a cirurgia para retirá-lo no final de agosto. Todos achavam que seria benigno, mas era maligno. O primeiro diagnóstico demorou muito, tive que mandar uma parte (das amostras) para os Estados Unidos porque ninguém sabia direito o que era. E aí chegou o diagnóstico por biologia molecular. Descobrimos que era um tumor (sarcoma) de Ewing, um quadro muito raro em adultos. Passei por uma saga. O Paulo Hoff, chefe da oncologia aqui na Rede D'Or, sugeriu que eu pedisse opiniões fora do Brasil (além de ser coordenador nacional de terapia celular da Rede D'Or, Vanderson também é professor titular de hematologia e terapia celular da USP e pesquisador sênior do Instituto Butantan).
Nessa época eu tinha um congresso fora, na França, onde morei muitos anos e tive uma consulta no país. Ainda passei por outra consulta nos Estados Unidos, remotamente.
O protocolo de tratamento para o diagnóstico que tive é bem intenso, normalmente aplicado em crianças e que os adultos toleram menos. Meu ciclo começou em novembro. O quadro foi um achado, eu não sentia nada. A febre e diarreia que tive antes foram ligadas a outro tumor que tive em 2020, em plena pandemia. Era um tumor localizado no pâncreas. E eu tive que tirar um pedaço do órgão e um pedaço do intestino. Foi um caso de cirurgia, não precisei de químio.
Meu tratamento eu levei muito bem até o sexto ciclo (de quimioterapia). Foi tudo como esperado, houve inclusive a queda de cabelo. Tive pouca náusea e, às vezes, a imunidade caía muito e eu ficava com riscos de infecções, mas mesmo assim eu não deixava a peteca cair. Cheguei a ir para o Carnaval de Salvador e de Recife. Peguei até Covid, mas tudo bem, eu não queria mesmo é pegar antes do Carnaval. Não quis parar meus projetos de vida, meu trabalho, nada.
Trabalho com oncologia há 30 anos e com transplantes. Grande parte da minha formação foi fora do Brasil, voltei há cerca de oito anos para ser professor (na Faculdade de Medicina da USP). Trabalhei com crianças e adultos, principalmente na área de transplante de medula óssea.
Conheço essa rotina, vi diversos pacientes sofrendo com sua imagem, coma queda de cabelo. Vivendo angústia do sofrimento, da morte e da solidão. Quando soube que teria que fazer quimioterapia também, já sabia que não poderia correr daquilo, teria que enfrentar.
Eu sabia que meu cabelo ia cair, aquela coisa toda. Nessa época, fui até a casa de uma sobrinha que também é hematologista para cortar o cabelo. Eu disse: poxa, estou acostumado a falar para o paciente “não liga com a queda de cabelo, ele vai crescer”. Mas não é só isso, dizer que vai passar. É algo muito… difícil.
Minha barba, por exemplo, nunca me conheci sem, sempre tive desde que era estudante, adolescente. Naquele momento me vi falando com os pacientes “vai crescer”. Só que na minha vez não era isso que eu queria ouvir. Eu queria ouvir “poxa, realmente vai cair, você vai mudar, vai ter que se olhar de maneira diferente. Terá que achar outras coisas para se ver bonito”. E depois do que passei, comecei a falar com os pacientes não só um “seu cabelo vai crescer, vai cair, mas vai crescer”.
(Nesse tratamento) você tem várias perdas. Passa a andar, por exemplo, com um cateter. Eu mesmo mostrava o meu para os pacientes. Dizia a eles: você vai enfrentar, e vai ter muita gente ao seu lado para enfrentar junto. Para mim, tudo isso foi um grande aprendizado. Tem sido muito difícil, mas foi ótimo poder ver o outro lado.
Fiz medicina por que queria ajudar. Ter empatia é algo importante para mim. Me formei em uma área muito difícil, em que vemos quadros que levam muitos pacientes à morte. Escolhi esse caminho porque minha paixão era ser importante na vida das pessoas. Voltei para o Brasil, inclusive, com interesse de trabalhar e ajudar no SUS. Quero mudar essa situação (distante no atendimento) no paciente do SUS e do privado. Logo que cheguei no Brasil lembro de um paciente de 21 anos que queriam colocar no paliativo. Lembro me perfeitamente dele. Eu recusei. Pensei que havia mais opções para ele, mesmo que no que tivesse disponível no SUS não tivesse mais jeito. Conseguimos uma alternativa e ele está vivo até hoje, morando em Manaus. Entre os hospitais público e privados que eu trabalhava, eram 15 minutos de distância de carro, mas anos e anos de distância (em alguns tratamentos).
Hoje vemos uma revolução na medicina, na hematologia. Veja, por exemplo, a CAR-T Cells. Tive um paciente que não havia mais alternativas conhecidas para seu caso. E ele foi incluído no protocolo de tratamento lá da USP de Ribeirão Preto. Ele ia morrer, pois não havia nada mais a ser feito, mas com essa terapia ele já está mais de dois anos superbem, vivendo normalmente. As possibilidades dentro da hematologia vão crescendo com o progresso da medicina e da ciência.
No meu caso pessoal, vivi um tratamento baseado em quimioterapia pesada. E não é imunoterapia, só quimioterapia. A químio destrói as células do tumor, mas destrói também as células normais. Por isso cai o cabelo, temos náusea, e outros efeitos. Tive medo na minha última quimioterapia. Fiquei internado mais de uma semana não respondendo bem aos medicamentos. Então, a partir daí que minha médica anunciou que havíamos chegado ao meu limite. E isso é o tratamento com sarcoma em adultos, é chegar até o limite que pode.
Foi um tratamento baseado em cirurgia, em quimioterapia e radioterapia. Após esse processo fiz uma biópsia líquida (um tipo de exame) para ver se havia células cancerosas circulantes. E aí ainda bem que não tinha nada. Estamos num momento de remissão completa.
Fui otimista, segui trabalhando e adaptei a agenda para isso. Estive em viagens e congressos, por vezes atendia os pacientes online. Não faz sentido parar, né? É isso que falo com os pacientes que tenho. Não mude o seu projeto de vida, continue.
É claro que você vai ter que se adaptar. Mas faça o que você tem que fazer. Sou meio liberal, acho que temos que transmitir otimismo. Não sei nem te dizer quantos pacientes tratei ao longo do meu próprio processo. Fiz, enquanto estava doente, uns 20 transplantes de medula. Nesse meio tempo, é difícil até contar as consultas.
Aprendi que a vida é agora. Algo que eu curiosamente até falava para os meus pacientes. A vida é o agora, a gente não vai pensar muito no amanhã, vamos pensar no agora, como fazer o momento ser positivo e não negativo. O passado já foi e o futuro você não sabe, o agora você tem a oportunidade de se adaptar ao momento. É um raciocínio que me ajuda bastante. Tenho muitos projetos de vida, de profissão, quero inclusive que o SUS tenha tudo de melhor para os pacientes — sou fã do SUS e vejo todas suas dificuldades — e esse é meu plano.
Na minha profissão, vivi cada uma das perdas de maneira diferente. Não é possível viver a morte de um paciente da mesma maneira do outro. Cada perda é muito sofrida, para mim foi assim. É muito difícil. Acho que se um médico achar que todas as perdas são iguais ele não será bom. Tem que sair, procurar outra profissão. Tive uma perda recentemente de um paciente jovem, penso nele todos os dias. Lembro até hoje do primeiro paciente que perdi, de todos que se foram. E não são poucos.
A minha primeira experiência como “doente” foi durante o curso de medicina, quando tive uma febre de origem indeterminada. Fiquei dois meses com essa febre e ninguém sabia o que era. Eu achava, então, que o médico resolveria tudo. E, então, descobri que não. O médico não é um Deus e, ali, não tive o suporte que eu precisava. Pensei que queria um médico que me olhasse nos olhos e fosse capaz de sentir o que eu estava sentindo.
Lembro-me de uma paciente que tive, ainda fazendo clínica. Ela tinha um câncer de mama, um tumor que não a permitia sair do hospital, sob risco de desidratação. Ela morava em uma cidade assim, uns três, quatro horas de Belo Horizonte. Seu sonho era ver os filhos pela última vez. O hospital não tinha transporte direito para ela. Nós, por questões éticas, não podíamos dar alta. Eu disse que iria levá-la, que seria minha responsabilidade. Tudo na minha vida mudou depois disso. Ao chegar, ela ficou de três a quatro horas com os filhos, depois voltou ao hospital e morreu uma semana depois. Recentemente, os filhos me contactaram pelo Instagram. Eu os conheci criança (hoje são adultos), e eles me disseram que se lembram até hoje do dia que a mãe visitou, que foi o último momento que eles a viram.
Eu não sou só médico. Penso que todos temos que ter esse lado humano, você tem que se colocar no lugar do outro. Independente da sua profissão. Vou falar para arquiteto, tem que ter uma coisa diferente, você não pode seguir os padrões. É isso: temos que ser diferentes.
* Em depoimento a Mariana Rosário
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