Publicado em 24/05/2022 - 08:07 / Clipado em 25/05/2022 - 08:07
Audiência pública debaterá cobrança de mensalidade nas universidades
Prática seria discutida nesta terça-feira (24) na CCJ, mas foi adiada depois de aprovação de requerimento para debate público
Jáder Rezende
Depois da polêmica do ensino domiciliar, esquenta a controvérsia sobre a cobrança de mensalidade nas universidades públicas. A matéria, que seria analisada na tarde de ontem na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara dos Deputados, voltará à pauta somente depois da audiência pública requerida e aprovada também ontem para debater o tema, pela deputada Maria do Rosário (PT-RS).
A ideia da cobrança de mensalidades nas universidades públicas partiu do deputado bolsonarista General Peternelli (PSL-SP), por entender que a gratuidade atual gera distorções graves na sociedade, privilegiando apenas alunos de família de maior renda, que estudam em escolas particulares. "Não vejo motivo para tanta polêmica. Minha proposta é simples: quem pode, paga, quem não pode, não paga. O principal é propiciar uma universidade com ensino de qualidade”, diz.
Representantes da União Nacional dos Estudantes (UNE) estiveram presentes na sessão de ontem, protestando contra a proposta, embora a CCJ fosse apenas analisar questões técnicas, que venham a ferir princípios constitucionais para autorizar ou não a sua tramitação no Congresso Nacional.
E são justamente os atentados aos princípios constitucionais que são elencados por entidades educacionais que sempre defenderam a educação gratuita e de qualidade no país. O presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro, observa ser corriqueiro propor-se a cobrança de mensalidades dos alunos mais ricos que estejam na universidade pública, mas pondera que há pontos a serem esclarecidos, como a alteração do perfil dos estudantes das universidades públicas.
Mudança de perfil
“Os defensores dessa cobrança, muitas vezes, não sabem que esse perfil mudou completamente, em especial graças à política de cotas. Não é mais verdade que o universitário típico, nas instituições federais, seja alguém que estudou em colégios particulares caros. Cada vez temos mais alunos que vêm das escolas públicas e cada vez mais descendentes de africanos ou de indígenas”, afirma Ribeiro.
Ele observa, ainda que o melhor financiamento para o ensino superior, assim como para a pesquisa, nas boas instituições de ensino, é o que vem do imposto progressivo e não o da conversão da educação em mercadoria. “O problema é que o Brasil pratica pouca progressividade no imposto. O imposto de renda para a pessoa física, que deveria ser o mais justo de todos, tem apenas duas alíquotas, de 10 e de 27,5%. A partir de uns R$ 5 mil por mês, a tributação é igual para todos”, salienta, ponderando que o assalariado que recebe R$ 10 mil, assim como os que ganham R$ 100 mil por mês, pagam a mesma taxa. “E na verdade, nem sempre, porque se o ganho for de lucros, dividendos ou de empresa sujeita ao Simples, há isenção ou tributação baixa”, arremata.
Para o ex-ministro da Educação, isso significa que será mais justo para a sociedade cobrar de todos os que ganham mais, e não apenas daqueles que, ganhando mais, se eduquem, “pois a educação não deve ser entendida como um subsídio estatal para melhorar a renda dos educados, e sim como um investimento que a sociedade efetua para retornos importantes destinados a todos”.
A solução mais simples, para ele, seria a adoção da progressividade do imposto. “Há três impostos que podem facilmente ser meios de promover a justiça social. Um é federal, o imposto de renda sobre a pessoa física. Outro, estadual, é o IPVA, que deveria incidir também sobre iates e jatinhos (hoje, isentos). O terceiro, municipal, é o IPTU. Cada esfera de governo pode cobrar progressivamente um desses impostos. Quem pode mais pagará mais”, explica.
Respeito à Constituição
A vice-presidente da SBPC, Fernanda Sobral, lembra que desde a formatação da Constituinte a entidade organizou uma comissão que enumerou propostas para a educação, entregues ao então presidente da assembleia nacional deputado Ulysses Guimarães. “A SBPC foi árdua defensora da gratuidade do ensino em todos os níveis. É um preceito constitucional”, alerta.
Ela lembra que em 2018 a entidade promoveu uma espécie de observatório das eleições, com uma série de compromissos em defesa da educação, encaminhados a vários candidatos e que muitos deles assinaram, inclusive o General Peternelli, que agora alega não lembrar o teor do documento.
“São, basicamente, duas razões pelas quais a SBPC assume posição contrária à tramitação desse projeto de lei. A constituinte e o princípio a ser preservado pelo próprio autor do projeto, que dificilmente será aprovado. Já há e ainda haverá mobilização muito forte para impedir essa votação, a exemplo da proposta do ensino domiciliar. É um projeto que contraria um princípio constitucional. A constituição tem essa posição histórica”, lembra.
Questionado sobre o documento, Peternelli disse não se recordar do conteúdo. “Lembro que assumi o compromisso com a educação de qualidade”, disse.Além de entidades estudantis, senadores e deputados e senadores de oposição enxergam na iniciativa um grande retrocesso.
Renda familiar
O presidente da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Marcus David, também destaca que a gratuidade do ensino é um princípio que a entidade defende desde a sua criação, há exatos 33 anos, sobretudo a ideia de que as universidades públicas são redutos dos mais abastados.
“Essa ideia desconstrói argumentos usados na defesa das nossas propostas. Há hoje um grande equívoco sobre a reserva de espaço elitista, como se as universidades estivessem ocupadas exclusivamente por alunos de classes alta e média. Hoje o acesso está bem mais democratizado. Há cotas que garantiram um número muito grande de estudantes provenientes de segmentos sociais menos favorecidos”, afirma o também reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), observando que essa democratização é tão clara que em determinadas regiões do país mais de 70% dos alunos têm renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo.
Marcus David pontua ainda que as universidades que oferecem ensino de qualidade são muito caras e que adotar mensalidades altas fugiria completamente à realidade da classe média.
“É absolutamente equivocado fazer, poer exemplo, comparação com curso de direito de uma universidade federal tradicional com a privada de altíssima qualidade, de valor extremamente elevado. Se cobrassem apenas de alunos mais abastados seria insuficiente. Qual a parcela de alunos que teria possibilidade de pagar? Seria muito pequena nesse padrão de renda.”
Ele observa que a alta qualificação das universidades públicas refletem à qualificação de toda a sociedade. “O Brasil e qualquer outro país só serão efetivamente desenvolvidos quando tivermos uma parcela maior de nível de educação mais elevado. É necessário que haja uma rede de universidades que ofereçam ensino de excelência para alavancar a sociedade”, afirma.
Audiências públicas
O titular da Comissão de Educação do Senado, Pulo Paim, é mais um a apontar a afronta à Constituição nesse processo, e destaca que a educação é o principal instrumento de emancipação de qualquer sociedade. “A distorção no público das universidades é porque, basicamente, até o momento, o princípio constitucional de igualdade de acesso não foi devidamente observado e cumprido. O caminho é reforçar a educação básica, fortalecer as políticas públicas para redução da desigualdade socioeconômica e afirmativas, como a lei de cotas, que, efetivamente, democratizam o acesso às universidades públicas", diz.
Além da audiência pública já prevista na CCJ, mas sem data ainda definida, a deputada Maria do Rosário afirma que outra audiência pública será requerida, desta vez na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados. “Essa PEC desobriga o Estado de suas responsabilidades. Nosso objetivo é chamar a sociedade a se mobilizar contra essa proposta, que vai de encontro ao direito à educação previsto na Constituição”, afirma.
A dirigente do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (Sou Ciência) Soraya Smaili, lembra que pesquisa de opinião elaborada recentemente pela instituição concluiu que 90% da população brasileira apoia as universidades públicas, enquanto apenas 8% são favoráveis à cobrança de mensalidade.
Para ela o projeto de cobrança de mensalidade nas universidades públicas não deveria sequer ser debatido. “É uma proposta que deveria ser eliminada. Este projeto não diz respeito à nossa realidade, É algo contrário a tudo que o nosso país precisa, embora já saibamos que as tentativas de cobrança de mensalidade, assim como as de privatização das universidades públicas, vêm sendo objeto de desejo de ação de muitos grupos não é de hoje”, disse.
Ela lembra que tais propostas já foram impedidas no passado e acredita que essa nova tentaiva não vai dar em nada. “Na verdade, precisamos discutir a expansão da educação pública de qualidade, a educação superior para todos os jovens, especialmente para aqueles entre 18 e 24 anos que querem entrar na universidade e que não tem como fazê-lo. É prioritário dar acesso aos nossos jovens, garantir a eles o futuro, para que possam, de fato, ter uma formação e uma atuação junto a sociedade”, afirma.
“Esse projeto é totalmente extemporâneo, não tem o menor sentido, principalmente nesse momento, no final de um governo que só agrediu as universidades públicas e não reconheceu o papel que essas instituições prestaram durante o período da pandemia.”
Ampliação de investimentos
Em carta aberta divulgada ontem, a UNE destaca que o Artigo 206 da Constituição Federal, em seu inciso IV determina a gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais. “Ainda que o texto proposto e o parecer favorável do relator, afirme que apenas os alunos mais abastados pagariam, nós da União Nacional dos Estudantes acreditamos que tal feito é a porta de entrada para o fim da universidade pública e gratuita.Temos convicção que o direito à uma educação pública, gratuita e de qualidade é inalienável! Não negociamos as nossas conquistas que levaram décadas para garantir 302 universidades públicas espalhadas pelo território brasileiro, das quais nos últimos 2 anos provaram de forma direta sua importância, foi visível o papel das universidades públicas e gratuitas no combate á covid-19."
"Essa PEC é mais uma prova de que Bolsonaro quer destruir a educação pública desde o ensino básico até o superior, e se coloca como inimigo número 1 da educação brasileira. A solução para os problemas presentes nas universidades públicas não é a cobrança de mensalidade nas universidades, mas sim um investimento potente do Estado nas mesmas. Afinal, são as Instituições Federais de Ensino Superior que concebem mais de 95% da pesquisa, ciência, inovação e tecnologia produzidas no país. É preciso retomar urgentemente o orçamento tirado do setor. Só com investimento em ciência, na escola e na universidade vamos conseguir retomar o crescimento do país. Investir na educação não é gasto, é o nosso desenvolvimento”, diz o documento.
A UNE finaliza a carta aberta apelando aos parlamentares que retirem urgentemente essa discussão de pauta, pois a cobrança de mensalidade nas universidades públicas não deve ser um ponto de discussão, ao contrário da ampliação dos investimentos na educação.
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