Publicado em 14/10/2021 - 07:56 / Clipado em 15/10/2021 - 07:56
Não ao Marco Temporal: Contra o genocídio indígena!
Débora Foguel, Vanessa Moreira Sígolo e Washington Douglas Nunes Lira
O marco temporal das terras indígenas é negacionista da ciência e do conhecimento antropológico
Iniciamos por recordar do IIIº Encontro Nacional de Estudantes Indígenas, em 2015, ocorrido na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, onde representantes de várias universidades brasileiras estiveram presentes com uma comitiva de indígenas aldeados. Em meio a danças e pinturas, compartilhando saberes ancestrais, muitos foram os relatos e experiências trocadas sobre o processo doloroso da luta indígena travada desde os nossos ancestrais. Este é um lindo exemplo de como o convívio, a troca, a solidariedade deveria permear o encontro e a vida em comum, pacífica e respeitosa dos povos! No entanto, hoje, em 2021, estamos assistindo a maior mobilização indígena desde 1988, organizada em defesa dos direitos dos povos originários e contra o Marco Temporal, ora em votação no Supremo Tribunal Federal (STF).
A ação proposta do Marco Temporal, com seu julgamento agora suspenso no STF, estabelece que só poderão solicitar novas demarcações de terras os povos que comprovarem que habitavam aquela área requerida na data de promulgação da Constituição Federal de 1988. Esta tese é inconstitucional, tendo em vista o direito originário das terras indígenas, além de que desconsidera a história do genocídio e expulsão dos povos indígenas no Brasil ao longo de 500 anos. Uma história maculada e que começa com a colonização européia nas Américas e se aprofunda com o desenvolvimento do capitalismo, e sua catastrófica insustentabilidade social e ambiental.
Desde a promulgação da CF em 1988, foi garantido o direito à demarcação de terras aos indígenas, estabelecendo o chamado "direito originário" sobre as suas terras ancestrais. Nossa Carta Magna reconhece os indígenas como os primeiros e naturais donos do território, e estabelece a obrigação da União de demarcar todas as terras ocupadas originariamente por esses povos. Há mais de 300 processos de demarcação de terras indígenas esperando sua tramitação nas instâncias jurídicas, e que podem ser inviabilizados pela aprovação dessa ação.
A tese do marco temporal é negacionista, rejeita o conhecimento antropológico e a história, e deixa ainda mais explícita a oposição e disputa entre os interesses de ruralistas, com apoio do governo Bolsonaro, e dos povos originários, apoiados por diversas organizações da sociedade civil e, também, por centros de pesquisas e universidades, brasileiras e também de outros países, que defendem a ciência, os direitos humanos e a justiça social e ambiental.
O Brasil é terra indígena! Ao mesmo tempo em que os movimentos indígenas lutam para que mais indígenas desaldeados se identifiquem como indígenas, que passem a valorizar a sua cultura ancestral, esses mesmos movimentos também defendem a ampliação do acesso de indígenas às universidades. Avanços nas políticas de cotas no ensino superior ocorreram nas últimas décadas, e, temos hoje, universidades mais diversas e plurais. Em decorrência desse convívio, universitários hoje participam da Mobilização Indígena, com comitivas de estudantes das Universidades Federais, como a Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e apoios de centros universitários, como o Centro de Estudos Periférico (CEP) do Instituto das Cidades da Universidade Federal de São Paulo (IC-Unifesp).
À presença fundamental de lideranças indígenas, como a de Sônia Guajajara, candidata a vice-presidência do Brasil em 2018, histórica lutadora pela preservação e demarcação das terras indígenas e o combate ao desmatamento na Amazônia e outros biomas, somam-se diversos apoios à luta indígena. Para além das redes sociais, o tema mobiliza movimentos sociais e periféricos, com manifestos de organizações das periferias urbanas e de várias organizações da sociedade civil, e também de artistas e militantes sociais, presentes no acampamento em Brasília e na 2ª Marcha das Mulheres Indígenas.
No empenho de aproximação e construção conjunta, saudamos nosso amigo indígena Lucas Kariri, da aldeia Maracanã, no Rio de Janeiro, que esteve em Brasília durante cerca de um mês e dialogou conosco na construção desse artigo de opinião.
Antes de que qualquer ser humano tire proveito da mãe natureza, tão cultuada e preservada pelos povos originários das Américas, é necessário conhecer a cosmovisão da natureza desses povos, como aponta Ailton Krenak em suas obras. Os saberes indígenas nos levam a novas compreensões da natureza, seus biomas, sua fauna e sua flora, vistas, por exemplo, no modo de lidar com as chuvas para fazer a lavoura crescer forte e produtiva. Aprendendo com a cosmovisão indígena, poderemos reencontrar os caminhos para o desenvolvimento justo, solidário e sustentável que almejamos, percebendo os graves erros de mais de 500 anos de exploração social e ambiental, para enfim construirmos modos de vida com harmonia entre sociedade e natureza.
Ecoando o grito “Não ao Marco Temporal!”, os três autores desse texto fazem parte do Centro SoU_Ciência (https://souciencia.unifesp.br), uma nova iniciativa de pesquisadores de várias universidades do Brasil que estamos, juntos, na defesa das ciências, das universidades e da educação. Nós nos somamos a tantas outras vozes, e somos solidários e apoiamos a luta e as manifestações dos povos indígenas de todo o Brasil. Fortalecer os vínculos entre as universidades, a ciência e a sociedade, especialmente com a população historicamente marginalizada no acesso a direitos fundamentais, como os povos indígenas, é um dos propósitos fundamentais do nosso Centro.
Débora Foguel é Professora do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Vanessa Moreira Sígolo é Professora-bolsista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e Washington Douglas Nunes Lira é estudante da Unifesp e Bolsista IC do Centro SoU_Ciência
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