Publicado em 08/04/2022 - 08:10 / Clipado em 08/04/2022 - 08:10
Sociedade brasileira desperta para ciência
Ampliação de interesse pela ciência é acompanhado de interesse por política
Pedro Arantes
Soraya Smaili
Maria Angélica Minhoto
SÃO PAULO
Apesar do avanço do negacionismo e dos ataques do presidente aos cientistas, os brasileiros e brasileiras confiam na ciência, em especial a produzida por universidades e institutos públicos. Mais que isso, confiam, defendem e estão interessados em saber mais.
É o que mostra levantamento feito pelo SoU_Ciência em parceria com o Instituto Ideia Big Data, a partir de dados atualizados e inéditos, que divulgamos em nosso site. A pesquisa de opinião mostra que estamos diante de um novo ‘sujeito político’ de grande confiança pela população: o "cientista público" é quase um novo herói nacional. Felizmente, um herói não-messiânico e baseado em evidências. Mas ainda há muito a fazer para uma real tradução e ‘alfabetização científica’ no Brasil e ao aprofundamento do debate sobre diferentes áreas, métodos e propósitos do fazer científico – nem sempre consensuais.
A atual conjuntura evidencia que o choque entre negacionismo e ciência não ocorre estritamente no campo do conhecimento, mas também no campo da política, onde está em jogo o direito à vida. É neste contexto que a ciência tem se consolidado também como sujeito político e uma das principais forças sociais de oposição. Ou seja, a ciência não está restrita aos laboratórios e a especialistas, e passou a ser reconhecida pela sociedade brasileira como bem público, integrante da cidadania.
Ao realizar o levantamento, demos sequência a uma série histórica que vinha sendo produzida pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCTI) e Centro de Gestão de Estudos Estratégicos (CGEE) sobre a percepção da ciência e tecnologia no Brasil. A série, contudo, tinha realizado sua última coleta em 2019 e não tinha dados que se referiam ao atual contexto do país. Atualizamos os resultados para 5 perguntas relevantes com base nas respostas de 1,2 mil pessoas. A coleta dos dados foi feita em todo o país no final de janeiro, já parcialmente divulgado em matéria da Folha de S.Paulo.
Os entrevistados foram questionados sobre o nível de interesse por oito assuntos (sendo eles política, saúde, meio ambiente, arte e cultura, ciência e tecnologia, esportes, economia e religião), e os resultados apontam que as áreas de interesse que mais cresceram entre 2019 e 2022 foram ciência e política, enquanto reduziu-se o interesse por religião.
Essa mensuração não é casual. A atuação do governo federal na pandemia levou a uma "politização da ciência" e uma visibilidade pública de debates e posições contraditórias, onde, de um lado estava o governo e alguns médicos "cloroquiners", e, do outro, o restante dos cientistas e defensores do Sistema Único de Saúde (SUS) baseados em evidências.
Empatados como temas de maior interesse estão a saúde (87%) e o meio ambiente (86%), seguidos por ciência e tecnologia (82%) e economia (80%). São temas importantes não só para o momento da pandemia, mas também por serem áreas muito atacadas pelo governo federal, que remetem à crise econômica e social, corte de recursos, políticas erráticas e mesmo facilitação à destruição ambiental.
Na pergunta sobre quais profissões em que o brasileiro mais confia como fonte de informação, o crescimento dos cientistas de instituições públicas foi impressionante - sem dúvida fruto do trabalho de enfrentamento à covid-19. Em 2019, os cientistas estavam empatados com religiosos e atrás de médicos e jornalistas. Em 2015, amargavam o quarto lugar. Mas em 2022, alcançam 41,6% da preferência do brasileiro, um crescimento espetacular de 253% em relação aos 16,4% de 2019.
Interessante notar que o "concorrente" direto do cientista nas demais pesquisas, o líder religioso, caiu na preferência popular. Depois de alcançar o auge em 2015 como possível "fonte de informação confiável" (escolhida em primeiro lugar para 19,5% dos brasileiros), caiu em 2022 para 1/3 do prestígio anterior, apenas 6,5%.
A confiança nos políticos segue no chão, com menos de 1%. Isso significa que o interesse renovado dos brasileiros por política, citado anteriormente, não representa um aumento do prestígio dos políticos, mas sim de possível politização da sociedade.
Apesar da valorização, apenas 26% dos entrevistados disseram conhecer o nome de um cientista. O número pode parecer baixo mas é quase 4 vezes maior do que em 2019, quando apenas 7% sabiam dizer o nome de um cientista brasileiro.
Isso nos mostra que tanto os cientistas precisam continuar se esforçando para traduzir a ciência para o grande público, como são necessárias mais políticas públicas de inclusão e incentivo. Para conhecer e apreciar a ciência é preciso ter curiosidade de um lado e acesso de outro. Além disso, é essencial realizar uma série de ações de divulgação e o SoU_Ciência também tem como missão contribuir para esse processo.
Feita a mesma pergunta sobre as instituições de pesquisa, o resultado foi igualmente impressionante. Em 2019, só 9,4% dos brasileiros sabiam citar o nome de uma instituição de pesquisa brasileira. Em 2022, esse número saltou para 42,2%, ou seja, subiu mais de 4 vezes. O destaque foi para o Instituto Butantan em primeiro lugar, e Fiocruz em segundo.
O levantamento revela que, apesar da tragédia humana e política que vivemos, a pandemia deixou um saldo positivo: a ciência e seus profissionais estão sendo reconhecidos, valorizados e, mais do que nunca, fazem parte da agenda política do Brasil. Elementos indispensáveis para construirmos um futuro com desenvolvimento e avanços em todas as áreas.
Passada a pandemia de Covid-19, o desafio será fazer com que a "onda pró-ciência" não reflua, mas que nos leve a um novo patamar na relação com o conhecimento, com o aumento da capacidade de discernimento da sociedade brasileira. Que esse despertar inaugure novos e favoráveis tempos de desenvolvimento sustentável e com justiça social, com mais saúde e educação para toda a população.
Veículo: Online -> Portal -> Portal Folha de S. Paulo