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Publicado em 04/03/2022 - 09:09 / Clipado em 07/03/2022 - 09:09

Guerra na Ucrânia compromete cooperação científica mundial – 04/03/2022 – Sou Ciência


Na ciência, como na vida, é fundamental cooperar para superar grandes desafios. Na história da ciência, há muitas superações e descobertas, quase sempre a partir de trabalhos realizados sucessiva e incansavelmente por diversos autores, em equipe. Outro aspecto fundamental da ciência é a constante troca de novos conhecimentos e informações, por meio de publicações, dados abertos, conferências e encontros científicos. Via de regra, a ciência evolui pelo intercâmbio e discussão de resultados para responder a problemas iniciais ou para aperfeiçoar respostas já existentes.

Desde 2020, o mundo vive uma pandemia de grandes proporções e longa duração, assim como aconteceu no início do século XX. Mas, diferentemente da ‘gripe espanhola’ (1918-19), o surgimento do novo coronavírus ocorreu em um mundo globalizado, com as nações quase que total e simultaneamente conectadas pela internet e outras formas de comunicação.

Essa forte e ágil conexão permitiu a rápida troca de conhecimentos, informações e cooperação entre cientistas do mundo todo, além da divulgação dos resultados de suas pesquisas em tempo real. O fluxo enorme de dados ainda preliminares sobre as causas e consequências da pandemia de covid-19 teve efeitos negativos também, mas, certamente, os benefícios foram maiores.

Diante desse grande desafio para a humanidade, cientistas e instituições de pesquisa se uniram, passaram a integrar conhecimentos, divulgar abertamente resultados em busca de soluções para entender o comportamento de um vírus que se diferenciava de outros já conhecidos. Os resultados vieram rapidamente, com vacinas elaboradas e distribuídas em tempo recorde, fruto da ciência que já vinha sendo desenvolvida e da cooperação entre governos, universidades, institutos, laboratórios, indústrias e sociedade.

Com base nas tecnologias em desenvolvimento para outras finalidades, as vacinas da Universidade de Oxford e da BionTech, por exemplo, propuseram novas fórmulas, que foram testadas e aprovadas. Outras soluções seguiram caminhos mais tradicionais, como a Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan em parceria com a Sinovac, e que foi igualmente importante para enfrentar o cenário caótico que se instalou em todas as nações.

Grã-Bretanha, Alemanha, EUA, China, Índia e Rússia passaram a desempenhar papel importante no desenvolvimento de vacinas, de diferentes tecnologias, bem como no fornecimento dos insumos farmacêuticos. No Brasil, além dos estudos de fase 3 de algumas das vacinas, também há a pesquisa de novos imunizantes, desenvolvidos totalmente em nosso país. Durante este processo, houve muita cooperação e alguma esperança de que o esforço coletivo daria a diretriz para uma grande coalizão planetária no combate à pandemia. Contudo, apesar de redes de colaboração instituídas, as potências centrais, que hoje são protagonistas do conflito na Ucrânia, falharam em realizar um acordo efetivo e justo para a rápida distribuição e acesso a vacinas por todas as nações do mundo.

A cooperação inicial entre ciência e sociedade deu lugar à competição entre governos e empresas, favorecendo os países mais ricos e as farmacêuticas mais poderosas. Conflitos por poder, dinheiro e propriedade intelectual limitaram a cooperação e aprofundaram desigualdades e desconfianças.

Prenúncio do que estava por vir, ou simplesmente o retorno ao estágio anterior de guerra latente e competição feroz? De qualquer jeito, a ciência e a humanidade, que se defrontaram com o vírus e vislumbraram uma possível ordem global de maior cooperação, perderam com o retorno a uma ordem geopolítica e econômica polarizada, belicista e destrutiva. O fim da cooperação e o retorno ao estado de guerra entre impérios e mercados são um crime contra a humanidade, para além das vítimas diretas do conflito na Ucrânia.

Rússia e Ucrânia travam uma guerra ainda em meio à pandemia. Os dois países estão padecendo igualmente com a propagação da variante ômicron, com números astronômicos de casos diários (aproximadamente 180 mil diários na Rússia e 35 mil na Ucrânia, que tem população três vezes menor). Mesmo que a Rússia tenha produzido a sua própria vacina, a Sputinik, apenas metade da população tomou ao menos a primeira dose de vacina (no Brasil já estamos em mais de 80%).

Na Ucrânia a situação é ainda mais grave. Embora o país queira fazer parte da comunidade europeia, está bem longe de um padrão aceitável de vacinação, com apenas 35% da população com ao menos a primeira dose, segundo informações da Our World in Data (plataforma de visualização de dados e monitoramento desenvolvida pela Universidade de Oxford). Com a guerra, o processo de imunização dos ucranianos está ainda mais comprometido, já que a vacinação estará suspensa em quase todas as cidades diante dos ataques continuados e ida da população para abrigos antiaéreos.

O conflito acirrará os desafios da pandemia do ponto de vista regional e mesmo global, tendo em vista as projeções de deslocamento forçado de cerca de 5 milhões de pessoas durante guerra, produzindo uma onda de refugiados, o que agregará complexidade e inviabilizará previsões seguras sobre o controle da pandemia, visto que as variantes continuam em circulação no mundo.

Já é certo que a população mundial precisará de uma nova geração de vacinas em breve e, para isso, será necessário fortalecer a cooperação científica internacional e o investimento em diferentes frentes de atuação para diminuir a desigualdade na distribuição e no acesso. Outra evidência científica é a necessidade de diminuir a devastação do meio ambiente para impedir as dramáticas mudanças climáticas que estão em curso e que aumentam as chances de novas pandemias.

As questões do clima e do meio ambiente estão intimamente conectadas aos problemas de saúde, segurança alimentar e combate à fome. O conflito agravará essas tendências e já atinge consequências internacionais, com impactos negativos no comércio global, com aumento do preço de produtos e escassez de alimentos e energia (gás e combustíveis) – o que certamente penalizará ainda mais os países pobres e populações em situação de vulnerabilidade.

A guerra na Ucrânia e a nova polarização bélica global causará retrocessos e poderá anular o legado, mesmo que parcial, de cooperação global em avanços científicos, novas tecnologias e desenvolvimento de bens públicos para a saúde. Se era possível imaginar um ciclo de reconstrução pós-pandemia com avanços em várias agendas, a guerra e todas as suas consequências humanitárias, econômicas e políticas estão colocando em grande risco esse futuro minimamente promissor do pós-covid.


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