Publicado em 18/02/2022 - 09:55 / Clipado em 18/02/2022 - 09:55
Opinião – Sou Ciência: Bolsonaro e Orbán, aliados na guerra contra as universidades #politica
Radialista Rodrigo Pessoa
A visita de Bolsonaro à Rússia despertou interesse devido a um possível alinhamento político ou mesmo militar com Putin, o que está longe de ser real, tendo em vista os laços estreitos das Forças Armadas brasileiras com os EUA e a própria base de apoio de Bolsonaro ser americanófila, como as Estátuas da Liberdade falsificações nas lojas Havan, ícones do bolsonarismo. A viagem à Rússia é, sobretudo, comercial, focada em agrotóxicos (mas lembremos também que este é o país do Telegram – que abriga a maior rede digital bolsonarista e que está na mira do STE –, especialista em ataques cibernéticos e que agiu com trolls e fakenews para a vitória de Trump em 2016). A viagem mais “política” foi na segunda parada, na Hungria e na Polônia. Após a queda de Donald Trump, o primeiro-ministro húngaro Viktor Orbán é um dos líderes mais importantes e influentes da extrema direita global e um dos padrinhos de Bolsonaro, que chama de “irmão em afinidade”.
Orbán foi um dos poucos líderes estrangeiros presentes na posse de Bolsonaro. Na ocasião, o então Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, declarou no Twitter que “Brasil e Hungria compartilham valores e visões de mundo”, ao qual Orbán respondeu “a definição mais adequada de democracia cristã moderna pode ser vista no Brasil, não na Europa”. Orbán e Bolsonaro são parceiros políticos e compartilham visões autoritárias, militaristas, xenófobas, fundamentalistas e racistas sobre o mundo e o papel de seus países, incluindo ataques à ciência, autonomia universitária e liberdade de pensamento.
A situação institucional no Brasil, apesar das tentativas de golpe de Bolsonaro e apoiadores, ainda não chegou ao mesmo ponto do “regime” húngaro, que o próprio Orbán chama de “regime iliberal” – isso mesmo, com “i”. No Brasil, as instituições democráticas, mesmo sob tensão, funcionaram e impuseram limites à criação de um regime de extrema direita. As universidades públicas são um elo fundamental para garantir a democracia, a liberdade de pensamento e a ciência contra o negacionismo e, por isso mesmo, têm sido particularmente atacadas.
Além de estranguladas no orçamento, as agências federais de fomento cortaram verbas e verbas para pesquisas, como já comentamos. em outro artigo da SoU_Ciência, ,e, desde 2019, reitores de 21 Universidades Federais foram nomeados ilegitimamente pelo presidente, desrespeitando a vontade das comunidades acadêmicas. Professores, pesquisadores e reitores também foram ameaçados e até silenciados, com condutas coercitivas, denúncias vazias na tentativa de abertura de processos administrativos e até mesmo termo de ajuste de conduta evitando críticas ao governo. Em julho de 2020, jornalista Rubens Valente revelou que André Mendonça, então Ministro da Justiça, mantinha equipas de investigação secretas a monitorizar mais de 500 funcionários da oposição, incluindo polícias antifascistas e professores universitários.
Na Hungria, Orbán, no poder desde 2010, conseguiu causar ainda mais danos na batalha contra as universidades públicas e institutos de pesquisa, inserindo interventores, exilando cientistas e intelectuais e até induzindo uma universidade inteira a deixar o país. O “despejo” da Universidade da Europa Central (CEU) de Budapeste para Viena, depois que o parlamento aprovou uma lei em 2017 que a declarou ilegal, mostrou internacionalmente que as universidades e a ciência na Hungria estavam sob ataque.
A CEU é a universidade de maior prestígio do país, fundada pelo financista húngaro e sobrevivente do Holocausto George Soros – acusado de ser globalista e até esquerdista. Foi concebido durante a queda do regime comunista, com um perfil liberal para planejar o novo futuro do país como uma ‘sociedade aberta’ – mas nem mesmo seu perfil orientado para o mercado garantiu uma existência pacífica para a universidade sob o regime de Orbán. .
Após protestos de rua com dezenas de milhares de manifestantes e cartas de solidariedade apoiadas por 17 ganhadores do Prêmio Nobel, o CEU assinou um acordo com o governo austríaco para transferir a maioria dos cursos para Viena. Juízes da União Europeia (UE) consideraram a ação do primeiro-ministro húngaro um “discriminação arbitrária” não é compatível com a Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
Além do caso emblemático do CEU, universidades e centros de pesquisa estão perdendo autonomia em relação ao governo e intelectuais e cientistas estão deixando o país. O “regime iliberal” publica semanalmente listas de inimigos, incluindo dezenas de acadêmicos, acusados de serem mercenários. De acordo com Franklin Foer“A Hungria já teve algumas das melhores universidades da Europa pós-comunista. Mas o governo de Orbán as esmagou sistematicamente. Seus funcionários invadiram as universidades públicas, controlando-as rigidamente.
O financiamento da pesquisa, uma vez determinado por um corpo independente de acadêmicos, agora é fornecido principalmente por um leal a Orbán. Em 2019, o primeiro-ministro húngaro liderou o ‘aquisição’ da renomada Academia de Pesquisa Húngaraque reúne 15 institutos de pesquisa e mais de 3.000 pesquisadores, controlando financiamentos e pesquisadores em posições-chave – supostamente para agilizar o patenteamento e reduzir os custos de pesquisa.
Como o professor e pesquisador do SoU_Ciência Rogério Schelegel já relatoumais de duas dezenas de universidades públicas foram ou estão sendo transferidas para fundações controladas por aliados de Orbán, atingindo 70% dos universitários do país.
Este modelo, não por acaso, é o que se pretendia no Brasil com o projeto futuro, em 2019, que transferiria progressivamente as universidades públicas brasileiras para a gestão de Organizações Sociais (OS) ou Fundações os ativos das universidades seriam administrados por fundos de investimento. O discurso “modernizador” da suposta eficiência do mercado para atender aos interesses públicos não é apenas falacioso, mas também encobre o ataque direto à autonomia das universidades e à liberdade de pensamento, cátedra e pesquisa.
Esse ataque, no Brasil e na Hungria, deve ser entendido em um contexto mais amplo de empoderamento da ultradireita global como ativista das guerras culturais em seus países, na definição de valores, comportamentos, ideias e políticas. Apesar de ainda mobilizar um imaginário conspiratório para enfrentar o comunismo, esse não é o foco da guerra cultural pós-Guerra Fria, mas a definição do que o ultradireitista Pat Buchanan chamou nos anos 1990 de luta pela “alma da nação” – o que exige batalhas no campo da educação, cultura, mídia, religião, costumes, leis, etc. E definição de inimigos, sobretudo internos.
Tanto os governos de extrema-direita no Brasil quanto na Hungria (assim como nos Estados Unidos, Polônia e outros países, são apoiados por bases religiosas fundamentalistas. Esses grupos atacam a diversidade cultural, étnica e de orientação sexual, o ambiente aberto, progressista e cosmopolita das universidades e produção científica de forma mais geral em nome da “nação”, “tradição” e “valores cristãos” – ou, no slogan fascista repetido por Bolsonaro e Orbán em seu encontro: “Deus, país, família”.
No Brasil especificamente, dados os avanços políticos e culturais das últimas duas décadas, especialmente com o novo protagonismo negro, popular, feminista, LGBTQIA+, indígena, há uma reação moralista, branca, racista, patriarcal, negacionista e revisionista. A resposta da sociedade contra tudo isso, felizmente, está sendo intensa e impondo limites, derrubando popularidade, reconhecendo a importância da informação e da ciência confiáveis na definição de políticas públicas e na garantia do direito à vida.
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