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Site Agência Lupa

Publicado em 20/11/2023 - 07:05 / Clipado em 21/11/2023 - 07:05

Lei de Cotas: estudos derrubam mitos sobre desempenho de alunos cotistas no Brasil


Catiane Pereira e Evelyn Fagundes

Rio de Janeiro - RJ

 

Apesar de ingressarem com notas inferiores, estudantes cotistas têm desempenho equivalente ao dos não-cotistas na universidade e não diminuem a qualidade do ensino das instituições. Diversas pesquisas publicadas ao longo das últimas décadas ajudaram a derrubar alguns dos principais temores levantados pelos críticos das ações afirmativas.

A política de reserva de vagas completou duas décadas este ano. A Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) foi a primeira do país a adotar o sistema de cotas, ainda em 2003. Nos anos seguintes, diversas instituições também passaram a reservar vagas para estudantes negros oriundos de escolas públicas. No entanto, foi só em 2012, a partir da Lei Federal nº 12.711/2012, também conhecida como Lei de Cotas, que a política passou a ser obrigatória em todas as instituições federais de ensino superior. 

A lei federal prevê a reserva de 50% das vagas em instituições de ensino superior federais para estudantes de escolas públicas com renda igual ou inferior a um salário mínimo per capita. Parte dessas vagas reservadas deve ser destinada a candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência.

No último dia 13, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionou a Lei Federal nº 14.723/2023, que revisou a Lei de Cotas. O novo texto incluiu quilombolas na reserva de vagas em universidades federais e instituiu políticas de inclusão em programas de pós-graduação.

“Esses jovens estão demolindo um mito propagado pelas elites [...] de que a chegada dos cotistas ao ensino superior faria cair a qualidade da educação. [...] E o que aconteceu foi exatamente o contrário. A realidade é que os jovens das classes menos favorecidas são tão inteligentes quanto os jovens ricos e agarram com unhas e dentes a oportunidade de mostrar a capacidade de estar onde estão”, declarou o presidente durante a cerimônia de sanção da lei.

O discurso de Lula se ampara em estudos que avaliam os resultados da política de ações afirmativas. Levantamento do Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas, que reúne pesquisadores de sete universidades brasileiras, identificou que 72% dos estudos empíricos publicados sobre cotas etnorraciais avaliam a política de forma positiva, enquanto 12% tiveram conclusões negativas. O mapeamento analisou 237 textos produzidos entre 2006 e 2021.

Os estudos também destacam, para além da cota social, a importância da reserva específica de vagas para pretos e pardos.

A revisão da Lei das Cotas prevê que o Ministério da Educação passe a divulgar, anualmente, relatórios com informações sobre os resultados da iniciativa. Não há, atualmente, um levantamento oficial sobre o tema. A avaliação dos efeitos da implementação da norma, especialmente sobre a população negra brasileira, ficou a cargo de pesquisadores pelo país nas últimas décadas.

Neste Dia da Consciência Negra, a Lupa reúne algumas das pesquisas publicadas nos últimos dois anos e que desconstroem alguns mitos envolvendo o desempenho de estudantes cotistas.

 

Desempenho equivalente e evolução

Há evidências sólidas de que os beneficiários de ações afirmativas têm um bom desempenho — em alguma medida até melhor do que o esperado — e não atrasam as aulas. É o que defende o artigo “Racial and income-based affirmative action in higher education admissions: lessons from the Brazilian experience” (Ações afirmativas raciais e de renda no ingresso no ensino superior: lições da experiência brasileira), publicado em maio na revista científica The Journal of Economic Surveys.

O texto revisita diversas pesquisas produzidas sobre o tema. Um dos estudos citados é o intitulado “Performance of students admitted through affirmative action in Brazil” (“Desempenho de estudantes admitidos por meio de ação afirmativa no Brasil”, em português), publicado em 2017 na revista Latin American Research Review. Nele, os pesquisadores apontam que alunos cotistas apresentam desempenho semelhante ao dos não-cotistas. A pesquisa utilizou dados do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de 2009 a 2012. O estudo indica ainda que alunos cotistas têm desempenho ligeiramente melhor que não-cotistas em universidades privadas.

Os autores também citam outros estudos que apontam que as taxas de evasão no primeiro e segundo anos de curso entre cotistas são semelhantes às de não-cotistas; que bolsistas do ProUni têm desempenho superior ao de seus colegas não-bolsistas no Enade; e que as políticas de ação afirmativa não desincentivam o esforço entre vestibulandos cotistas, entre outros.

O trabalho é assinado por quatro pesquisadores das universidades NYU Xangai (China), SWUFE (China) e Cornell (EUA), além do atual ministro da Direitos Humanos e da Cidadania, Silvio Almeida, representando a Fundação Getúlio Vargas.

O artigo compreende que a finalidade das ações afirmativas baseadas no critério de raça é ampliar o acesso ao ensino superior de minorias sub-representadas para, dessa forma, promover condições de concorrência no mercado de trabalho e possibilitar uma melhor qualidade de vida. Nesse sentido, os pesquisadores defendem que as políticas afirmativas aumentam significativamente o acesso de estudantes de baixa renda e minorias que não teriam tido outra oportunidade de adentrar uma universidade sem a política.

“No geral, a ação afirmativa funciona, no contexto brasileiro, como pretendido: aumenta a diversidade, gera benefícios líquidos para os alunos-alvo e não reduz o bem-estar dos estudantes, a menos que as cotas os desloquem diretamente. Além disso, os alunos não apresentam um desempenho inferior e não há indicação de externalidades negativas no desempenho de outros alunos”, concluem os pesquisadores.

Outro trabalho recente que se debruça sobre o tema é a dissertação de mestrado “Políticas de cotas na UFBA: uma investigação sobre o desempenho acadêmico de estudantes cotistas e não-cotistas (2005-2019)”, publicada em 2021. Em sua pesquisa, Caio Vinicius Silva observou que, embora ingressem na Universidade Federal da Bahia (UFBA) com as menores notas, os cotistas conseguem eliminar as diferenças de desempenho ao longo de seus cursos.

Silva avaliou o desempenho de 61,5 mil ingressantes na instituição entre 2005 e 2019, dando enfoque especial a dez cursos — as duas graduações de cada área do conhecimento com os maiores números de cotistas.

O pesquisador concluiu que três cursos não apresentaram diferenças significativas de desempenho entre cotistas e não-cotistas (Letras Vernáculas, Letras Vernáculas

e Língua Estrangeira Moderna e Artes Plásticas). Em um curso, Teatro, os cotistas registraram notas superiores. Já em seis, não-cotistas detinham as maiores notas (Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo, Farmácia, Medicina Veterinária, Direito e Administração).

O autor destacou que, ainda que possam ter desempenho inferior nas notas, os estudantes cotistas apresentam uma evolução maior em todas as áreas. “Isto é, na contrastação das notas de entrada com as notas finais, encontramos que cotistas elevam suas pontuações dentro da academia ao passo que entre os não-cotistas as pontuações são diminuídas”, avalia Silva. Houve, portanto, ao final dos cursos, em todos os casos, uma redução da distância encontrada no período do ingresso.

 

Qualidade de ensino mantida

Além disso, ao mesmo tempo em que registraram aumento do número de estudantes cotistas, cinco das seis universidades federais analisadas na pesquisa “A importância das cotas raciais e sociais no Brasil: uma reparação histórica necessária” tiveram incremento da nota média na avaliação do Enade — contrariando a ideia de que a reserva de vagas prejudicaria o desempenho acadêmico.

Pesquisadores do SoU_Ciência compararam os resultados das edições de 2013 e 2019 do Enade, com foco nos cursos da área da saúde. Foram consideradas no levantamento, além da Unifesp, as instituições de ensino com o maior número de matrículas em cada uma das regiões do país em 2019: as universidades federais do Pará (UFPA), da Paraíba (UFPB), de Santa Catarina (UFSC), de Brasília (UnB) e a Fluminense (UFF).

À exceção da UFPB, que na média oscilou 0,46 ponto para baixo, todas as instituições registraram aumento de estudantes cotistas no período analisado e também melhoraram seus índices no exame.

“Podemos afirmar com segurança que as Universidades Federais não são mais um reduto exclusivo das elites brasileiras, mas estão abertas a todos os estratos sociais e formam seus estudantes sem qualquer perda de qualidade”, afirmam os pesquisadores.

 

Menos desistência

Contrariando o senso comum, em geral, estudantes cotistas também desistem menos de seus cursos em comparação aos não-cotistas. O levantamento “Avaliação das políticas de ação afirmativa no ensino superior no Brasil: resultados e desafios futuros”, produzido em 2022 pela associação Ação Educativa em conjunto com o Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), utilizou dados do Censo da Educação Superior para analisar as taxas de evasão nos dois primeiros anos de curso entre ingressantes de 2010 a 2013 em universidades federais.

Entre os ingressantes de 2010, por exemplo, em todo o país, 18% dos alunos cotistas haviam deixado o curso até o término do segundo ano, contra 19% dos não-cotistas. Em 2013, essa diferença era de 18% a 23%. Para os pesquisadores, esse é um indicativo de que os estudantes cotistas reconhecem e valorizam a oportunidade de estudar.

O levantamento apresenta outros dados que indicam os resultados da política de ações afirmativas em instituições federais. De 2013 a 2019, o número de egressos de escolas públicas e de baixa renda que eram pretos, pardos ou indígenas teve aumento de 205% — demonstrando que a aprovação da Lei de Cotas impulsionou a inserção desses grupos nas universidades.

Ainda de acordo com o estudo, o incremento à frequência no ensino superior foi de 87% para negros e 40% para indígenas entre 2011 e 2019. Mesmo com o avanço, a população negra no país ainda registra índices de escolarização superior (18%) muito abaixo dos da branca (33%). 

 

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