Publicado em 15/09/2023 - 08:27 / Clipado em 15/09/2023 - 08:27
Ou julgamos os crimes da pandemia ou...
Escolha do novo Procurador Geral é decisiva para não repetirmos erros do passado
Pedro Fiori Arantes
Soraya Smaili
Maria Angélica Minhoto
Com a colaboração da advogada Pâmela Copetti Ghisleni da AVICO (Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19)
SÃO PAULO (SP)
O Brasil não pode continuar sendo conhecido por sua leniência com crimes contra a humanidade e violações de direitos humanos. Estamos diante de uma oportunidade histórica para fazer justiça e reparação, desta vez diante da condução criminosa da pandemia de Covid-19 no Brasil e que resultou em ao menos 120 mil "mortes evitáveis" apenas no primeiro ano (mar/20 a mar/21), segundo relatório da OXFAM-Brasil ou 156 mil, segundo o epidemiologista Pedro Hallal em artigo na Lancet - quando tínhamos 305 mil mortos no total. E há apoio da população para que os crimes da pandemia sejam julgados. Pesquisa do SoU_Ciência com 1,3 mil entrevistados em todo o Brasil demonstrou que 62% consideram o governo Bolsonaro responsável pelo aumento do número de mortes e a maioria da população quer justiça e condenação - além da criação de uma Comissão da Verdade e indenização das vítimas.
Tem ficado cada vez mais evidente que a falta de justiça de transição, julgamento e condenação dos crimes da ditadura colocou novamente em risco nossa democracia, com militares saídos dos porões e seus pupilos atuando abertamente no desmanche de políticas públicas, na desestabilização institucional, na produção de caos e na tentativa de autogolpe. Militares agiram diretamente no agravamento da pandemia, descumprindo as medidas preventivas, atrasando a compra de vacinas, descoordenando o SUS, atacando a ANVISA, Fiocruz e instituições de pesquisa, transmitindo informações mentirosas à população, produzindo medicamentos ineficazes, além da falsificação de carteiras de vacinação. O porão homicida dessa vez não foi no DOPS e no DOI-CODI, mas no Ministério da Saúde.
Quem deveria imediatamente atuar para barrar essa conduta criminosa não cumpriu sua missão. O atual Procurador-Geral da República e que está de partida, Augusto Aras, foi omisso e conivente, engavetou denúncias e agravou o massacre da pandemia no Brasil. O novo PGR está para ser indicado e escolhido por Lula. Precisamos de um Procurador digno do nome, que atue na defesa do interesse público contra crimes de Estado, inclusive denunciando Chefes de Estado e de Governo, como fez Strassera na Argentina, que colocou no banco dos réus, logo após o fim da ditadura, o alto comando militar e o ditador Videla. Como disse Strassera em sua célebre peça de acusação final: "Agora que o povo recuperou o governo e o controle das instituições, assumo a responsabilidade de declarar em nome dele que o sadismo não é uma ideologia política nem uma estratégia bélica, mas uma perversão moral. Este julgamento e a sentença que proponho buscam estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória. Não na violência, mas na justiça".
O sadismo nos porões de tortura, nos voos da morte ou ao desacreditar a vacina e a máscara, ao deixar doentes sem oxigênio, divulgando medicamentos sem eficácia, combatendo o isolamento, permitindo aglomerações, expondo a população ao risco de contágio, subfinanciando e desarticulando o SUS e o sistema de pesquisa brasileiro caracterizam crimes suficientes que precisam continuar sendo apurados, denunciados, julgados e, no caso das vítimas e seus familiares, reparados, como direito à memória, à verdade, ao luto e à indenização.
Aras termina o seu segundo mandato como chefe do Ministério Público no dia 26 de setembro. Uma recondução, segundo os aliados do atual Governo, é praticamente descartada. Lembremos que seu nome não estava na lista tríplice de indicados formulada pelo Ministério Público Federal (MPF), e foi pinçado por Bolsonaro com a clara intenção de bloquear as ações contra o governo, ao invés de dar provimento - o popular "engavetador". Com a pandemia, a gravidade do engavetamento de denúncias tornou-se vergonhosa e responsável por permitir ao governo continuar com sua conduta criminosa, ampliando o número de mortes.
Com a eleição do Presidente Lula, mudou seu posicionamento e subitamente demandou da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN) a remessa à Procuradoria-Geral da República de todos os relatórios produzidos durante a pandemia e enviados ao ex-Presidente, já que, segundo Aras, esses relatórios que indicavam os consensos científicos e as condutas corretas a serem adotadas pelo governo, configurariam um "fato novo" para reavaliar a conduta de Bolsonaro, viabilizando uma possível persecução penal que antes negara. Esse fato caminha lado a lado com a recente decisão do Ministro Gilmar Mendes, do STF, que anulou decisão da Justiça Federal do Distrito Federal que arquivou inquéritos relativos a irregularidades na pandemia, submetendo o caso novamente à PGR.
Recentemente, em julho de 2023, Aras reproduziu em seu Twitter uma postagem segundo a qual foi ele "quem reestruturou os mecanismos de combate à corrupção dentro da PGR e [...] que fossem revertidos recursos para o combate à Covid-19, tendo sido destinados 4,4 bilhões [...] ao combate à pandemia", em mais uma tentativa de desvincular-se da necropolítica do Governo Bolsonaro.
A despeito da sua camuflagem atual, Aras dá fortes indícios de que segue fiel escudeiro de Bolsonaro. No dia 9 de setembro, na mesma oportunidade em que criticou a "imprensa lavajatista", não economizou críticas ao acordo de delação premiada firmado entre o ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro, Mauro Cid, e a Polícia Federal. Segundo ele, "A PGR [...] não aceita delações conduzidas pela Polícia Federal, como aquelas de Antonio Palocci e de Sérgio Cabral, por exemplo". Como se sabe, a delação de Mauro Cid gera apreensão no entorno bolsonarista, tendo em vista que, além do caso das joias, o tenente-coronel está envolvido em outros inquéritos e denúncias envolvendo o ex-presidente, a exemplo dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro e de uma suposta trama para um golpe de Estado após o pleito eleitoral de 2022.
Seria pouco provável (para não dizer impossível) que Aras assumisse uma postura combativa e diligente quanto à pandemia e condizente com os direitos humanos na hipótese de reeleição de Bolsonaro. Sob o seu comando, a PGR arquivou centenas de pedidos de investigação contra Bolsonaro, não oferecendo nenhuma denúncia. Aras não só agiu para blindar o ex-Presidente, como também aparelhou a cúpula da PGR, com a indicação da bolsonarista Lindôra Araújo, por exemplo, ao cargo de Vice-Procuradora-Geral.
Apesar de tradicionalmente o PT acatar a lista tríplice elaborada pelo próprio Ministério Público, há rumores de que Lula, que já disse que não seguirá a lista desta vez, tende a indicar os Subprocuradores Antonio Carlos Bigonha ou Paulo Gonet Branco.
Gonet Branco, a despeito de ter se manifestado de forma bastante incisiva a favor da inelegibilidade de Bolsonaro na condição de Vice Procurador-Geral Eleitoral, criticando o ex-Presidente, tem perfil conservador, assumindo posições contrárias ao direito ao aborto e à reparação de famílias de vítimas da ditadura militar, por exemplo.
Já o mineiro Antonio Carlos Bigonha é ex-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República e, ao contrário de Gonet Branco, defendeu recentemente o direito de parentes de vítimas da ditadura militar receberem indenizações por danos morais e materiais. Bigonha também condenou o modus operandi da Operação Lava Jato, criticando trocas de mensagens entre Moro e Dallagnol.
Aras, que foi elevado ao patamar de "rainha" do jogo de xadrez pelo próprio Bolsonaro, dias antes de sua indicação, em 2019, agora arrasta-se pelo tabuleiro político deixando um rastro de mais de 700 mil mortos. Os familiares das vítimas não conseguem, não querem e não vão esquecer o que representou sua omissão na pandemia.
Chega de engavetadores, de procuradores omissos e coniventes, bajuladores do poder e, no limite, coautores dos crimes aos quais recusam oferecer denúncia. Está na hora de o Brasil ter à frente do Ministério Público um(a) Procurador(a) digno(a) da Instituição que representa, atuando como verdadeiro(a) fiscal do ordenamento jurídico, na defesa da sociedade diante dos crimes de Estado, sobretudo quando protagonizados pelos agentes estatais. Como declarou Strassera, em 1985: "A comunidade argentina [e vale para nós brasileiros] e também a consciência jurídica universal, confiaram a mim a digna missão de me apresentar diante deste tribunal para exigir justiça. [...] Esta é nossa oportunidade. Talvez seja a última. Quero usar uma citação que não pertence a mim, porque já pertence a todo o povo argentino. Senhores juízes: Nunca mais!"
https://www1.folha.uol.com.br/blogs/sou-ciencia/2023/09/ou-julgamos-os-crimes-da-pandemia-ou.shtml
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