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Portal Folha de S. Paulo

Publicado em 25/08/2023 - 10:40 / Clipado em 25/08/2023 - 10:40

Sem tempo a perder: o clima já mudou


Décio Luis Semensatto Junior 

Os impactos não ficam restritos ao local e ao momento em que ocorrem

 

 

Nas últimas semanas os grandes incêndios ocorridos no Hemisfério Norte ocuparam manchetes da imprensa no mundo. As cenas dramáticas vistas no Havaí, na Califórnia e na Grécia, para citar alguns exemplos, ganharam contornos mais sombrios porque dezenas de pessoas perderam suas vidas. Essas notícias se somam a uma série de outras acumuladas nos anos recentes, que também pontuaram a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado brasileiros como palco de desastres naturais causados pelos incêndios. Mais do que nunca, é preciso compreender que as mudanças climáticas significam sério risco à vida.

Eventos ambientais extremos mais intensos e mais frequentes são apontados por cientistas como consequência da aceleração das atividades humanas, sobretudo no último século, em que o crescente uso de combustíveis fósseis combinou-se com o desmatamento de áreas naturais, entre outros aspectos. De um lado, nossa espécie nunca testemunhou uma aceleração tão elevada da concentração de gases estufa na atmosfera e, de outro lado, nunca eliminou tantas áreas naturais que capturam e amortizam os efeitos desses gases. Se nos comparássemos a um paciente com quadro de febre crescente, seria o mesmo que agir para destruir o medicamento que nos curaria enquanto deliramos em nossa enfermidade cada vez mais debilitante.

Os impactos dos eventos extremos e das ondas de calor que temos experienciado obviamente não ficam restritos ao local e ao momento em que ocorrem. Muitos deles se estendem por vários anos porque interferem sobre processos naturais hiperconectados e também sobre a estrutura e dinâmica do tecido social. Locais atingidos por desastres naturais experimentam forte abalo da coesão comunitária, em que o esforço de reconstrução segue acompanhado da incômoda incerteza sobre novos eventos. Impactos ambientais se convertem em questão de saúde mental. Em uma parte, cabe aos governos e parlamentos, em suas diferentes esferas, agirem para atenuar as projeções feitas pelos cientistas para o futuro e prepararem-se para amenizar o impacto dos eventos que já estão em curso. Em outra parte, nossa ação individual baseada nas nossas escolhas cotidianas e no padrão de consumo que queremos sustentar fazem grande diferença, assim como ter uma postura crítica e ativa em relação aos governos que fazem parte do nosso contexto. Já não há mais tempo a perder com mandatários e representantes negacionistas da Ciência ou que não dão a ela a devida atenção. Estamos todos sujeitos aos efeitos das mudanças climáticas, mesmo que localmente façamos nossa lição de casa, porque os processos naturais simplesmente ignoram os limites territoriais dos países, estados e cidades. Ao mesmo tempo, é claro que a condição econômica faz enorme diferença em como as pessoas sofrerão com os efeitos negativos de eventos extremos. As consequências das mudanças climáticas também se pronunciam na desigualdade entre pessoas e países.

Os ecossistemas naturais são formados por uma infinidade de processos interconectados que são fundamentais para nossa sobrevivência, mesmo que sejam imperceptíveis em um olhar superficial. São uma cadeia invisível, porém muito presente. Os processos que formam a base de sustentação de nossas atividades são denominados pelos cientistas como "serviços ambientais", um conceito criado na esteira da evolução da área de Economia Ecológica. A regulação climática e hidrológica, a ciclagem de nutrientes e a amortização de impactos são exemplos de serviços ambientais pelos quais não remuneramos nem em um centavo os entes naturais os enormes benefícios que usufruímos. Em um artigo seminal publicado na Nature em 1997, Robert Constanza e colaboradores estimaram que a Natureza teria nos proporcionado mais de 33 trilhões de dólares ao longo do ano de 1994. Isso equivale a 59 vezes o PIB do Brasil na época. Os autores poderaram que seus números eram uma subestimação, pois ainda havia serviços ambientais que ainda não tinham sido adequadamente abordados, ou seja, os benefícios econômicos gerados pela Natureza ultrapassam muito a riqueza gerada pela maior parte da população mundial. Apesar de não pagarmos à Natureza, a desregulação dos serviços ambientais decorrente dos eventos climáticos extremos podem resultar em prejuízos econômicos enormes. Deixamos de ganhar e gastamos para reparar.

As mudanças climáticas não são uma mera projeção para 2050 ou 2100. É perceptível que elas já fazem parte do nosso presente. O significado dos recordes de temperatura média global atingidos em 2023 representa muito mais do que o calor incômodo deste inverno seco e praticamente sem dias frios. São indicadores de que estamos atingindo patamares muito preocupantes no funcionamento do nosso planeta, com consequências que nos atravessam em diversas dimensões. Em 1978, Adoniran Barbosa lançava a canção "Praça da Sé", na qual cantava "É o progresso, mudou tudo, mudou até o clima". Não há tempo a perder. O clima já mudou, e com ele nossas vidas também.

 

https://www1.folha.uol.com.br/blogs/sou-ciencia/2023/08/sem-tempo-a-perder-o-clima-ja-mudou.shtml

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