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Publicado em 11/08/2023 - 10:30 / Clipado em 15/08/2023 - 10:30

Desinformação científica: uma pandemia de mentiras



Esta terceira reportagem da série especial do Jornal da USP analisa os possíveis impactos das notícias falsas e teorias conspiratórias sobre a percepção pública das vacinas e da ciência no Brasil

 

A médica sanitarista e pediatra Jorgete Maria e Silva está acostumada a esclarecer dúvidas sobre a segurança de vacinas. É uma atribuição básica do seu trabalho no Ambulatório de Reações a Vacinas (RAV), que ela coordena no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (HCFMRP) da USP. Dúvidas e preocupações são comuns há bastante tempo, relata ela, motivadas em parte pelo sucesso dos próprios imunizantes, que fizeram muitas das doenças contra as quais eles protegem parecerem coisas do passado. “As pessoas não têm mais medo da doença, elas têm medo do que o filho delas pode apresentar depois de tomar a vacina”, diz a pediatra.

A situação piorou muito nos últimos anos, ressalta ela. Além das preocupações cotidianas sobre febre, dores e eventuais contraindicações de um determinado imunizante, começaram a surgir medos infundados sobre o risco de as vacinas alterarem o DNA, afetarem a inteligência, causarem infertilidade ou até mesmo a morte de crianças. “Começou com a da covid, mas acabou extrapolando para qualquer vacina”, relata Silva. Quase sempre, segundo ela, a fonte da desinformação são as redes sociais; e nem sempre os médicos conseguem mudar a percepção dos pacientes. “As fake news ganharam uma força muito grande”, lamenta a médica. “O que a gente fala de correto não suplanta o que as pessoas veem nas redes sociais.”

O relato dela ao Jornal da USP está em sintonia com os resultados de uma pesquisa realizada no início deste ano pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em parceria com o Instituto Questão de Ciência (IQC), com mais de 980 pediatras, que apontou as mídias digitais — em especial, as redes sociais — como principal fonte de hesitação vacinal entre as famílias atendidas por esses profissionais. “Estamos falando de um fenômeno que tem uma dependência muito grande dessas estratégias de comunicação”, disse o coordenador do levantamento e professor de Psicologia Social da Universidade de Brasília (UnB), Ronaldo Pilati. “As pessoas estão passando muito tempo dentro dessas plataformas, consumindo muita informação e produzindo atitudes com base nisso.”

Reconhecido mundialmente pela excelência de seu Programa Nacional de Imunizações (PNI), criado em 1975, o Brasil passou a registrar, desde 2016, uma queda “acentuada e perigosíssima” das suas taxas de cobertura vacinal, alerta o presidente da SBP, Clóvis Constantino. Um problema que, segundo ele, foi agravado por várias razões na pandemia — entre elas, a desinformação sobre a segurança das vacinas da covid-19.

Apesar da ótima cobertura conquistada nas doses iniciais de vacinação contra a covid em adultos, apenas 11% das crianças menores de 5 anos estavam devidamente imunizadas (com duas ou três doses vacinais) contra a covid-19 até agosto deste ano, segundo dados enviados à reportagem pelo Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz.

“As crianças estão completamente descobertas”, diz a farmacologista Soraya Smaili, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e coordenadora do Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência). “Infelizmente, no caso da vacinação infantil, acho que a desinformação venceu. E não sabemos exatamente como reverter isso”, lamenta ela. Mais de 3.500 crianças e adolescentes morreram de covid-19 no Brasil até o fim de 2022, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde. Nos primeiros seis meses deste ano, foram registrados 80 óbitos e mais de 2,7 mil hospitalizações por covid em crianças menores de 5 anos, segundo o observatório da Fiocruz. No grupo de 1 a 4 anos, a média nesse período foi de uma morte por covid por semana — um número altíssimo para uma doença que pode ser evitada pela vacinação desde os 6 meses de idade.

O temor maior dos especialistas, agora, é que essa hesitação se espalhe para outros imunizantes. “Estamos diante de um panorama muito perigoso”, que pode resultar no ressurgimento de várias doenças infecciosas de altíssimo risco, como a pólio e o sarampo, alerta Constantino. A cobertura vacinal como um todo no Brasil caiu para 68% em 2022, comparado a mais de 95% em 2015, segundo números oficiais do DataSUS.

Na avaliação do pesquisador Cristiano Boccolini, do Laboratório de Informação em Saúde (LIS) da Fiocruz, essa queda da cobertura vacinal no Brasil, de uma forma geral, está fortemente relacionada, também, a um processo de desorganização da atenção primária à saúde. No caso da vacinação contra a covid-19 em crianças, porém, o impacto da desinformação foi “especialmente cruel e muito mais impactante”, segundo ele. Discursos antivacina que sempre estiveram presentes no País “ganharam um porta-voz” na figura do presidente Jair Bolsonaro e de outros membros do alto escalão de seu governo — inclusive no Ministério da Saúde —, que sistematicamente questionavam a segurança das vacinas e minimizavam o risco da doença para crianças. “Os movimentos contra a vacinação ganharam muito mais potência com isso”, avalia Boccolini, que também é responsável pelo Observatório de Saúde na Infância da Fiocruz. “O resultado é esse que estamos vendo agora.”

Diante desse quadro, fica a pergunta: Quem ganha com isso? Qual é o interesse que alguém pode ter em disseminar informações falsas que colocam a vida e a saúde das pessoas em perigo?

A origem do movimento antivacina no mundo remonta ao início de 1998, quando o médico britânico Andrew Wakefield publicou um trabalho na revista médica The Lancet sugerindo que a vacina tríplice viral — que protege contra sarampo, rubéola e caxumba — poderia causar autismo. O estudo era uma falácia do começo ao fim, recheado de falhas éticas, técnicas e metodológicas que invalidavam completamente suas conclusões. Entre outros problemas, descobriu-se que Wakefield havia fraudado dados e que o trabalho fora financiado por advogados que representavam famílias em processos contra fabricantes de vacinas. O artigo acabou sendo retratado (revogado) e várias pesquisas realizadas desde então já comprovaram por A mais B que não existe nenhuma ligação entre vacinas e autismo. O movimento antivacina que foi gestado pela polêmica, porém, virou um monstro negacionista-conspiratório de sete cabeças que cientistas, médicos e autoridades sanitárias lutam até hoje para derrotar.

No Brasil, o sucesso do PNI e a atitude majoritariamente positiva da população em relação às vacinas nunca permitiram que esse movimento se estruturasse de forma tão relevante. Até que veio a pandemia de covid-19, com Jair Bolsonaro na presidência da República, e as vacinas — assim como as máscaras, o distanciamento social e praticamente todas as medidas preconizadas pela ciência como necessárias para o enfrentamento da covid-19 — foram engolidas pelo fogo da discórdia política.

Nas palavras da professora Marie Santini, diretora do Laboratório de Estudos de Internet e Mídias Sociais (NetLab) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a pandemia promoveu um “grande encontro do negacionismo científico com a indústria da desinformação”, em que interesses econômicos, políticos e ideológicos se misturaram num grande caldeirão de notícias falsas e teorias da conspiração sobre a covid-19 e tudo mais que acontecia no País naquele momento.

“A pandemia desnudou algo que já estava acontecendo, mas que não tínhamos ideia do tamanho nem da complexidade da ameaça que iríamos enfrentar”, avalia Soraya Smaili, referindo-se ao uso das plataformas digitais (redes sociais e aplicativos de mensagens) para a propagação sistemática de desinformação e discursos de ódio contra cientistas, universidades e outras instituições públicas de pesquisa que se contrapunham ao negacionismo científico do governo federal.

Reitora da Unifesp — instituição responsável por coordenar os testes clínicos da vacina Oxford-AstraZeneca no Brasil — até maio de 2021, Smaili passou a pandemia combatendo dois vírus simultaneamente: o da covid-19 e o da desinformação. “Foi uma coisa assustadora, que pegou a gente de surpresa”, relata ela. “Ficou evidente que há um esquema ultraprofissional por trás dessas redes de mentira e difamação, utilizando ferramentas de comunicação que nós, cientistas, ainda não dominamos.”

“Passamos pela primeira pandemia em que a ciência avançou rápido o suficiente para desenvolver vacinas e tratamentos novos. Mas também foi a primeira pandemia em que as pessoas escolheram não se vacinar por causa de mentiras”, disse o biólogo e divulgador científico Átila Iamarino, em entrevista concedida ao canal Meio, em maio deste ano. “Criou-se todo esse movimento de desinformação e ele continua agora, ainda está organizado, muito bem articulado e tem conotações políticas. Não é porque a gente teve uma troca de governo que ele vai se desmanchar magicamente. Na próxima pandemia ou crise que depender de ciência, como já está acontecendo com mudanças climáticas, essa rede de desinformação está estruturada, financiada e azeitada para trabalhar.”

Ciência capturada

Nesse ambiente altamente polarizado e politicamente radicalizado que se instalou no Brasil nos últimos anos, as discussões sobre temas de caráter essencialmente científico, como a gravidade da pandemia e a segurança das vacinas, foram muitas vezes sequestradas por movimentos políticos e reformuladas na forma de pautas identitárias — coisas nas quais você acredita ou não dependendo da sua bandeira política de preferência, e não das evidências ou dos argumentos técnicos apresentados.

“A polarização contaminou muito a ciência”, avalia o filósofo Pablo Ortellado, professor na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da USP. Desde o início da pandemia, ele já alertava para um “entrelaçamento perigoso” entre movimentos populistas de extrema direita e movimentos caracterizados por uma desconfiança profunda da ciência, como é o caso dos grupos antivacina. “São dois problemas diferentes, com raízes diferentes, mas que estão se entrelaçando, e esse entrelaçamento está impulsionando um ao outro de uma maneira que me parece bastante perigosa”, disse Ortellado, em julho de 2020, num evento da série USP Talks.

Apesar das raízes distintas, segundo ele, os dois fenômenos têm um ponto em comum: uma desconfiança profunda das elites políticas e intelectuais, nas quais se inserem cientistas e universidades. “A extrema direita acredita que uma parte da ciência está excessivamente politizada pela esquerda. Há muitas teorias conspiratórias a respeito disso”, aponta Ortellado, em entrevista ao Jornal da USP. “Ela não está negando a ciência; ela está alegando que o establishment científico foi politizado, e por isso ela politiza a ciência.”

Nesse contexto, propaganda política e desinformação científica podem representar dois lados de uma mesma moeda, que se retroalimentam cada vez que ela é jogada ao alto. Não se trata de negar o valor da ciência na sua essência, mas de reproduzir nela um cenário de polarização, no qual existe uma ciência vista como confiável e outra, como não confiável, dependendo de quem a produz e da visão de mundo na qual ela se encaixa.

“Tudo virou política na pandemia. Até as moléculas foram politizadas — a cloroquina era a molécula da direita, e quem não gostava de cloroquina era de esquerda”, diz o sociólogo Yurij Castelfranchi, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e coordenador do Observatório InCiTe, que estuda a comunicação e a percepção pública da ciência. “O centro do discurso dos grupos de desinformação no Brasil vai muito nesse sentido, de politizar tudo e, ao mesmo tempo, deslegitimar as fontes não ideologizadas, como a ciência e o jornalismo.”

 

Conteúdo adicional

Vídeo da BBC mostra como o debate sobre a cloroquina foi politizado durante a pandemia (publicado em maio de 2021)

A retórica usada por Jair Bolsonaro para negar a realidade do desmatamento na Amazônia no início de seu governo é um exemplo disso: sua contestação não era de que havia alguma falha técnica nos dados, mas de que o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) estaria “mentindo” e conspirando com ONGs internacionais para prejudicar seu governo e sabotar o desenvolvimento do Brasil. Na pandemia, cientistas e instituições que defendiam medidas mais rígidas de proteção sanitária e combatiam a falácia do “tratamento precoce” com cloroquina e ivermectina eram frequentemente demonizados como conspiradores de esquerda que queriam manter as pessoas confinadas em casa, em contraponto aos patriotas de direita, que defendiam a liberdade e o desenvolvimento do País.

“A desinformação científica e a polarização política operaram juntas na pandemia”, afirma Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública (FSP) e pesquisadora do Centro de Pesquisas de Direito Sanitário (Cepedisa) da USP. Ela co-coordenou um estudo com a organização Conectas Direitos Humanos, divulgado em janeiro de 2021, segundo o qual o governo Bolsonaro não teria sido apenas negligente no combate à pandemia, mas promovido uma “estratégia institucional de propagação do vírus” na sociedade. Um dos eixos fundamentais de implementação dessa política, segundo o estudo, foi o uso de notícias falsas e outras formas de desinformação para minar a confiança da população nas autoridades sanitárias e na ciência que embasava suas recomendações.

“Acho que essa propaganda contra a saúde pública que vimos na pandemia desempenhou um papel muito importante na cooptação de pessoas para a extrema direita”, avalia Ventura. “A saúde é um campo privilegiado para todo tipo de propaganda extremista, pela emoção que suscita. A gente já sabia disso de outras crises sanitárias; e esse ecossistema se fortaleceu muito na pandemia. É uma agenda muito fácil para mobilizar as pessoas.”

A comunicadora de ciência Natalia Pasternak ressalva, porém, que o uso da desinformação não é uma exclusividade da direita, e que o próprio movimento antivacina já foi um fenômeno da extrema esquerda. “Esses movimentos caminham no espectro político e ideológico”, diz Pasternak, presidente do Instituto Questão de Ciência, no Brasil, e pesquisadora na Universidade Columbia, nos Estados Unidos. A rejeição aos alimentos transgênicos e a promoção de diversas “terapias alternativas”, sem comprovação científica, são exemplos de pautas por vezes mais ligadas à esquerda, e também fortemente influenciadas por ideologias e desinformação. “Em qualquer espectro político, ideológico ou religioso, todo mundo tem a sua pseudociência de estimação”, diz Pasternak.

A preocupação com o tema é global, como mostra uma conferência de três dias promovida pela Fundação Nobel e pela Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, em maio deste ano. Na avaliação da professora Åsa Wikforss, da Universidade de Estocolmo, o problema a ser enfrentado não é uma negação generalizada do conhecimento científico, mas uma “perda de confiança politicamente polarizada” na ciência e nos meios de comunicação. “O que está ocorrendo é uma polarização internacional da ciência, porque a ciência conta verdades inconvenientes sobre as políticas preferidas de alguns políticos”, afirmou ela na conferência.
 

Complexidade exige cautela

Para a cientista política Lorena Barberia, professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP e co-coordenadora da Rede de Pesquisa Solidária em Políticas Públicas e Sociedade, que estuda fenômenos políticos e sociais ligados à pandemia de covid-19, a desinformação é um problema complexo, que ainda precisa ser mais bem estudado para se entender, de fato, quais são seu efeitos práticos e até que ponto essa desinformação, e as plataformas digitais nas quais ela circula, estão influenciando decisões sobre vacinas, eleições e outros fenômenos na sociedade.

Ela destaca uma série de quatro trabalhos publicados recentemente nas revistas Science e Nature, que sugerem que os algoritmos das redes sociais (Facebook e Instagram, mais especificamente) têm pouca ou nenhuma influência sobre as opiniões políticas de seus usuários nos Estados Unidos, apesar de influenciarem o que eles veem no mundo digital. “Uma questão na qual a ciência política tem insistido muito é que as pessoas têm um posicionamento ideológico anterior à exposição à desinformação”, diz Barberia. “O que estamos tentando entender é se essa desinformação muda o comportamento das pessoas; e muitos daqueles que dizem que muda nunca testaram isso com estudos experimentais.” Apesar de tudo o que aconteceu, a maior parte da população adulta — incluindo o eleitorado de direita — se vacinou contra a covid no Brasil, “e não podemos negligenciar isso”, completa ela.

Segundo Barberia, é preciso cuidado para que o combate à desinformação não desvie a atenção de outros problemas — por exemplo, falhas de comunicação ou deficiências estruturais do próprio PNI, que também podem estar contribuindo para a hesitação vacinal — nem iniba a discussão de preocupações legítimas que as pessoas possam ter sobre determinados assuntos —, por exemplo, sobre a segurança das vacinas ou das urnas eletrônicas. “A desinformação é um problema grave, mas não suficiente”, diz. “Estamos tão preocupados em caçar a desinformação que às vezes caímos numa armadilha”, de não olhar com a devida atenção para questões mais pragmáticas que estão sendo pautadas por ela no debate público, completa Barberia. “As pessoas que estão se engajando com esses conteúdos não estão necessariamente desinformadas; elas podem ter uma preocupação legítima com a qual precisamos dialogar.”

“Vale mencionar que o fato de as pessoas apresentarem dúvidas sobre os processos de desenvolvimento das vacinas contra covid-19 não necessariamente é sinônimo de rejeição vacinal: de fato, os imunizantes contra o novo coronavírus foram desenvolvidos em passos acelerados por conta da emergência sanitária. Por isso, para aumentar a cobertura vacinal, é importante – além de dar acesso a vacinas e neutralizar as informações falsas e distorcidas – também manter um diálogo em que os setores diferentes da sociedade possam expressar e sanar suas dúvidas e preocupações”, diz um estudo sobre desinformação no Telegram, publicado por pesquisadores do Rio de Janeiro (Fiocruz, UFF e PUC-RJ) na revista Intexto, em março deste ano.
 

Manipulação de emoções

O engajamento de cientistas, jornalistas e instituições de pesquisa com a divulgação científica nas redes sociais foi fundamental para mitigar os efeitos da desinformação na pandemia e preservar a adesão da população adulta à vacinação contra a covid-19, diz Yurij Castelfranchi, da UFMG. É importante reconhecer, porém, que esse esforço institucional, na maior parte das universidades, foi feito de forma improvisada, em caráter emergencial, e que é preciso investir muito mais em estruturas e estratégias modernas de comunicação com a sociedade. “Se você olhar o sistema de ciência e tecnologia como um todo, em nível nacional, ele ainda está muito pouco capacitado para entender como se faz comunicação no século 21”, avalia Castelfranchi.

Outro aprendizado importante dessa experiência, segundo ele, é que o poder da desinformação não está apenas na capacidade de disseminar informações enganosas, mas também de manipular emocionalmente sua audiência. “Desinformação não é o contrário de informação”, destaca o pesquisador. “Dentro da desinformação tem emoção. Dentro da informação, não tem.”

A capacidade de fazer pessoas acreditarem em coisas tão absurdas quanto terraplanismo, mamadeiras de piroca e vacinas com chips não nasce do dia para a noite; é uma vulnerabilidade construída em camadas, ao longo do tempo, por meio de conteúdos diversos que buscam criar um estado de pânico moral generalizado, no qual a confiança das pessoas nas instituições incumbidas de zelar pela veracidade dos fatos é sistematicamente erodida, diz Castelfranchi. Nesse contexto, completa ele, símbolos (como o Zé Gotinha), mensagens e narrativas positivas são tão importantes quanto fatos. Não basta oferecer informações cientificamente corretas se as pessoas não se conectam com essas informações nem confiam em quem as produziu.

“Assim como muitas pessoas se perdem na desinformação devido a um mecanismo que é majoritariamente identitário e emocional, o resgate delas também precisa se dar por meio da identidade e da emoção”, defende Castelfranchi. “A questão hoje não é tanto ter acesso à informação, é decidir em qual informação confiar”, diz a pesquisadora Vanessa Fagundes, coordenadora de comunicação da ciência na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig) e colega de Castelfranchi no Observatório InCiTe, da UFMG.

O saldo dessa batalha de comunicação pandêmica tem pontos positivos e negativos, segundo uma pesquisa conduzida pelo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Comunicação Pública da Ciência e Tecnologia (INCT-CPCT) — do qual Castelfranchi e Fagundes também fazem parte. A parte boa é que 55% das mais de 2 mil pessoas ouvidas no estudo disseram que a confiança delas na ciência aumentou durante a pandemia, contra apenas 10% que passaram a confiar menos. A porcentagem de pessoas capazes de citar o nome de uma instituição de pesquisa brasileira também aumentou para 25%, comparado a 9% numa pesquisa semelhante, realizada em 2019. Os nomes mais lembrados foram os do Instituto Butantan, da Fiocruz e da Universidade de São Paulo.

O lado ruim da história é que quase 30% dos entrevistados disseram confiar pouco ou nada na ciência; 54,5% acreditavam que cientistas “permitiram que ideologias políticas influenciassem suas pesquisas” na pandemia; 40% disseram que as empresas farmacêuticas “escondem os perigos das vacinas” e 20% consideraram que “as vacinas não são necessárias”.

Apesar do grande volume de desinformação e negacionismo que circula na sociedade, segundo os pesquisadores, não há evidências da existência de um grupo coeso de pessoas que poderia ser caracterizado como um “movimento anticiência” no Brasil — no sentido de um grupo organizado que se coloca contra qualquer tipo de ciência. Todas as pesquisas realizadas pelo INCT-CPCT nos últimos anos sugerem que os fatores que impulsionam a rejeição a determinados postulados da ciência (como a segurança das vacinas, o papel dos seres humanos na mudança climática ou a evolução biológica da espécie humana) estão mais relacionados a questões de natureza moral, política e religiosa do que de conhecimento científico ou escolaridade, e que esses fatores não são universais. Quem nega a mudança climática não é necessariamente criacionista, por exemplo, assim como quem é criacionista não é necessariamente antivacina, pois os motivos que despertam esse negacionismo são diferentes para cada tema e para cada grupo.

“Temos que ter cuidado ao falar sobre um movimento anticiência no Brasil, porque a princípio não existem indícios de que ele exista de uma forma coesa”, disse Fagundes, ao apresentar os resultados da pesquisa na última reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Curitiba. Por outro lado, há um sinal preocupante nos dados que precisa ser mais bem investigado. Pela primeira vez, os pesquisadores detectaram uma correlação entre o negacionismo de dois temas distintos: pessoas que se recusavam a vacinar os filhos se mostraram três vezes mais propensas a negar, também, a existência das mudanças climáticas. “É um resultado importante, e um indício preocupante, de que as campanhas de desinformação podem ter criado terreno fértil para o surgimento de um grupo de pessoas adeptas de teorias da conspiração em geral”, concluem os autores, no resumo executivo da pesquisa.
 

“Mercado perverso”

A maioria das pessoas, quando espalha desinformação científica, está agindo de boa fé; ou seja, não com a intenção de enganar ou causar malefício aos outros, mas porque acreditam estar compartilhando uma informação verdadeiramente relevante, avalia Castelfranchi.

O mesmo não pode ser dito de quem produz a desinformação. “O material de grande impacto que a gente vê circulando por aí claramente é fabricado por pessoas que sabem o que estão fazendo”, diz o pesquisador. “Não é alguém que surtou no meio da noite e saiu dizendo que tem grafeno na vacina. Os caras baixam trabalhos científicos, mexem nas frases, ajustam dados. É um trabalho claramente profissional.”

Além das potenciais motivações políticas e ideológicas, frequentemente há um interesse econômico envolvido. “Por que tem gente fazendo isso? Porque dá dinheiro”, resume Natalia Pasternak. Por trás de muitos grupos e indivíduos que promovem desinformação científica na área da saúde, segundo ela, existem estratégias comerciais para a venda de cursos, livros, consultorias, vitaminas, suplementos e outras “terapias alternativas”; além da monetização de conteúdo nas redes sociais. “Existe um mercado perverso que lucra com a desinformação”, afirma Pasternak.

Em um caso recente, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul condenou em primeira instância a associação Médicos pela Vida (MPV) e três empresas a pagar indenizações no valor de R$ 55 milhões por danos à saúde pública, decorrentes da publicação de uma peça publicitária (intitulada Manifesto pela Vida) que promovia o uso do chamado “tratamento precoce” contra a covid-19. Segundo a sentença, ficou comprovado que a publicação, veiculada em vários jornais de grande circulação no início de 2021, foi bancada pelo laboratório Vitamedic, fabricante de ivermectina e outros ingredientes do chamado “kit covid”, que compunha o tal tratamento precoce.

Segundo informações apresentadas pela própria empresa e anotadas no relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da pandemia, o faturamento da Vitamedic com medicamentos do kit covid passou de R$ 16 milhões, em 2019, para R$ 474 milhões, em 2020; apesar de não haver — nem à época, nem agora — nenhuma comprovação científica de eficácia desses produtos contra a covid-19. Em reposta à condenação, a MPV publicou uma nota em seu site afirmando que não reconhece nenhuma irregularidade da sua parte, que não obteve nenhum benefício financeiro com a publicação do manifesto, e que a decisão judicial “parece ignorar completamente toda a fundamentação científica” que, segundo a associação, comprovaria a eficácia do tratamento precoce. Todas as partes recorrem da decisão.

A Academia Brasileira de Ciências (ABC) está atenta ao tema e criou no início deste ano um grupo de trabalho (GT), com 20 pesquisadores, incumbido de produzir análises e recomendações para lidar com a desinformação científica no Brasil. “A longo prazo, precisamos de educação científica. No curto prazo, precisamos de algo mais contundente”, diz o professor Glaucius Oliva, do Instituto de Física de São Carlos da USP, que coordena o GT. O grupo espera produzir uma série de documentos sobre o assunto até o fim do ano. “É um problema determinante para o futuro da sociedade e da própria ciência”, conclui Oliva.

 

 

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