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Portal Folha de S. Paulo

Publicado em 14/07/2023 - 08:38 / Clipado em 14/07/2023 - 08:38

Sem anistia aos Crimes da Pandemia


STF reabre inquérito e maioria dos brasileiros quer justiça e reparação

 

 

 

Pedro Fiori Arantes

Maria Angélica Minhoto

Soraya Smaili

SÃO PAULO (SP)

 

 

Nesta semana o Supremo Tribunal Federal reabriu os inquéritos para apurar as responsabilidades sobre os crimes da pandemia de Covid-19 no Brasil. O STF anulou a decisão da Justiça Federal de Brasília, que havia arquivado o processo e determinou que a Procuradoria Geral da República retome a análise dos seguintes crimes cometidos por Bolsonaro e equipe: prevaricação, epidemia com resultado morte, emprego irregular de verbas públicas, falsa comunicação, entre outros descritos pela Polícia Federal.

Mesmo com subnotificação, o Brasil está entre os três países com população superior acima de 10 milhões de habitantes com mais mortes per capita por Covid-19 (dados Our World in Data, até março de 2023). Em primeiro lugar está o Peru, com 6,4 mil mortos por milhão de habitantes, em segundo os EUA com 3,3 mil mortos por milhão e quase empatado o Brasil com 3,2 mil mortos por milhão.

Lembramos que países do Leste Europeu em situação mais grave que o Brasil não são comparáveis, pois têm populações pequenas, de 2 a 10 milhões de habitantes, menos que a cidade de São Paulo. Já os EUA, país muito mais rico (aliás, o país rico mais desigual do mundo), viveu tragédia similar a brasileira, também presidido no início da pandemia por um negacionista. Os EUA, pior que nós, não possuem saúde pública universal, e nem suporte comparável ao SUS. Mas, a partir de janeiro de 2021, conseguiram derrotar Trump e o novo presidente Democrata adotou todos os protocolos adequados e acelerou a vacinação.

Os crimes da pandemia no Brasil são inúmeros e foram fartamente descritos no Relatório da CPI e na pesquisa Linha do Tempo da Estratégia Federal de Disseminação da Covid do CEPEDISA da Faculdade de Saúde Pública da USP. O Centro SoU_Ciência também pretende colaborar na coleta e organização de evidências desses crimes e da sua rede. Estamos montando um banco de dados para acesso público com declarações e manifestações dos diversos agentes que compuseram o que denominamos de "necrossistema da pandemia Covid-19 no Brasil". O material está sendo organizado por categorias temáticas e por agentes e instituições participantes da rede negacionista que ampliou o número de mortes no Brasil. Servirá a pesquisadores, processos judiciais, enlutados e qualquer cidadão interessado no tema.

Estimamos coletar mais de mil evidências, muitas delas de materiais já apagados das redes sociais e canais de Internet, mas que constituem prova material das condutas criminosas de diversos agentes, não só do então presidente e do Governo Federal, mas também de influenciadores e jornalistas negacionistas, médicos e entidades, planos de saúde, farmacêuticas do kit Covid, empresários, militares, religiosos, prefeitos e governadores que atuaram contra as evidências, consensos científicos e orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde). O banco de dados também poderá ser pesquisado por temas indexados, como: minimização dos níveis de risco e gravidade do vírus; a tática criminosa de contágio por "imunidade de rebanho"; embates contra vacinas, uso de máscara e isolamento; problemas de ética médica; o caso de Manaus; entre outros.

Além do banco de dados, estamos preparando materiais de comunicação, como animações e um mapa interativo multimídia que permitirá aos interessados navegarem com maior facilidade na pesquisa de conteúdos, atores, temas e evidências, acessando áudios, vídeos, imagens e textos. Esperamos com isso colaborar nas investigações, no esclarecimento público, na justiça, memória e reparação dos vitimados e enlutados com os crimes da pandemia.

Outra ação do SoU_Ciência tem sido a realização de levantamentos nacionais de opinião pública, sobre vários temas relacionados à pandemia e suas sequelas. Nosso último levantamento, com mais de 30 perguntas e realizado entre 5 e 10 de junho com 1,3 mil pessoas em todo o Brasil, será em breve divulgado em mais detalhes em matérias na mídia e no nosso site. Nele foi possível reconhecer o impacto da pandemia: além dos mais de 700 mil mortos, 41% dos entrevistados acima de 18 anos declararam ter sido contagiados pelo vírus ao menos uma vez, o que equivale a 66 milhões de pessoas. Ou seja, quase o dobro dos 37 milhões de casos oficialmente notificados pelo governo brasileiro, o que evidencia a subnotificação no país.

Além disso, o luto pelas perdas é enorme: mais da metade da população (51%) declara que perdeu familiar ou amigo. É um cenário de trauma de guerra, que deve ser tratado com muitas ações complementares, tanto restaurativas quanto de "justiça de transição", do negacionismo para a ciência, na conduta das políticas públicas e de Estado.

Antecipamos aqui apenas dois resultados que nos ajudam a compreender o apoio da sociedade à reabertura dos inquéritos sobre os crimes da pandemia no Brasil. No gráfico abaixo vemos que 52% dos entrevistados defendem que sejam julgados e, se culpados, condenados os responsáveis pelos crimes da pandemia. Quando analisamos o perfil do entrevistado pela escolha do candidato no segundo turno das eleições presidenciais de 2022, vemos que 79% dos eleitores de Lula são pela abertura dos processos e julgamento, enquanto a maioria dos bolsonaristas quer anistia e encerramento dos inquéritos. A divulgação completa da nossa pesquisa irá mostrar em detalhes esses e outros resultados polarizados politicamente e como isso influiu na percepção da pandemia.

Contudo, quando a pergunta dá menos margem à polarização, é interessante notar uma certa convergência na escolha de ações. O segundo gráfico, abaixo, é um exemplo. Ao tratarmos das formas de justiça, memória e reparação, há um certo alinhamento até surpreendente. Mesmo que apoiando em menor intensidade, a ordem de ações a serem empreendidas é parecida. A primeira delas é "Criar uma Comissão da Verdade para apurar os crimes": tanto eleitores de Lula (48%) quanto de Bolsonaro (34%) entendem que essa é a medida prioritária inicial a ser tomada. Na sequência estão: a indenização de familiares de vítimas e a criação de um Tribunal Especial para acelerar os julgamentos.

A reabertura dos inquéritos pelo STF permite que o Brasil dê um passo histórico, que não foi capaz de dar em relação aos crimes da ditadura. Devemos imediatamente iniciar os processos judiciais, julgamentos e condenações.

Estamos diante da maior tragédia de saúde pública da história do Brasil, com inúmeros envolvidos numa rede de necropolítica. Graças ao SUS e às nossas universidades e institutos de pesquisa públicos a tragédia não foi maior. É preciso passar a história a limpo para que não mais se repita. Do controle social sobre as políticas públicas e de Estado, ao compromisso com as evidências científicas; do currículo das faculdades de medicina à conduta ética de conselhos profissionais; há muito o que fazer. Mas, tudo isso depende, sobretudo, que os julgamentos comecem já e sejam céleres, como está ocorrendo com os golpistas de 8 de janeiro.

 

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