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Portal Folha de S. Paulo

Publicado em 30/06/2023 - 08:25 / Clipado em 30/06/2023 - 08:25

Mito da democracia racial prejudica Cotas


Debater ações afirmativas é pensar projeto de país e nosso futuro

 

 

 

Maria Angélica Minhoto

Pedro Arantes

Soraya Smaili

Com a colaboração de Delton Aparecido Felipe

SÃO PAULO (SP)

 

 

As universidades públicas brasileiras foram por longo tempo elitistas e frequentadas pelas classes médias e altas, brancas e urbanas, como forma de perpetuação no poder das classes dominantes. Quase todas nasceram de projetos de suas elites regionais, para a formação de seus filhos e quadros técnicos e políticos para seguirem liderando o país. Mesmo sendo financiadas pelo Estado, foram instrumento de dominação de classe e marcador social e racial incontestes. Apesar de públicas, serviram a interesses privados e a modelos de desenvolvimento que seguiam concentrando renda. Foram também a ponta de lança da importação de modismos, modelos culturais e padrões de consumo estrangeiros. É recente a virada que o sistema de educação superior pública sofreu no Brasil, graças à mobilização social e governos progressistas, tornando-se mais plural e democrático. Essa virada ocorreu graças à combinação de alguns fatores que geraram sinergias entre si e reconfiguraram o sistema: a expansão de vagas públicas; campi em novas regiões, anteriormente desprovidas (como áreas de fronteira, semiárido, Amazônia, periferias urbanas); novos cursos, currículos e perspectivas decoloniais e públicas; e a política de cotas, que aqui discutiremos.

A Lei 12.711/2012, mais conhecida como Lei de Cotas para o ingresso nas Instituições Federais de Educação Superior (IFES), completou 10 anos e aguarda desde agosto do ano passado, sua avaliação e revisão.

A Lei estabeleceu a reserva de 50% das vagas nas Universidades e Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia a egressos de escola pública, sendo metade dessas vagas distribuídas para candidatos com renda familiar per capita igual ou menor do que 1,5 salários-mínimos e, nelas, subcontas para pretos, pardos e indígenas e, em 2016, acrescentou também para pessoas com deficiência.

Em 10 anos, esta política afirmativa iniciou uma revolução silenciosa na sociedade, promovendo diversidade nas Universidades públicas, mais qualidade na formação de seus(suas) estudantes, como já mostramos aqui. A política de cotas vem auxiliando a combater o racismo estrutural e toda a sorte de preconceitos históricos e persistentes na sociedade brasileira.

Considerando que o momento político para revisão dessa Lei não foi nada favorável, sob os ataques constantes do governo passado às Instituições públicas de educação e à sua comunidade acadêmica, parte considerável de educadores, estudantes e da população em geral ficou apreensiva com o processo de revisão da Lei.

Agora, passadas as eleições, o contexto se mostra diferente. No entanto, não é possível deixar de considerar a composição do Congresso (Câmara dos Deputados e Senado), que estão mais conservadoras e à direita no espectro político. Isso, infelizmente, parece não contribuir para um debate franco e progressista sobre a Lei.

Segundo um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Pesquisadores(as) Negros(as) em cooperação com o SoU_Ciência, há 77 Projetos de Lei (PL) tramitando no legislativo que visam mudanças na Lei de Cotas. Em linhas gerais, é possível classificar esses PL em três categorias distintas, ao tomarmos o ponto de vista de um de país cujo projeto se fundamenta no combate ao racismo:

1) Projetos que propõem mudanças ampliativas aos direitos das pessoas negras, prevendo, por exemplo, elevação do percentual de cotas para essa população, ou auxílios estudantis aos mais vulneráveis, desde o ingresso no curso de graduação;

2) Projetos que propõem mudanças restritivas aos(às) negros(as), chegando a defender a eliminação do critério racial do sistema de reserva de vagas ou a proibição das comissões de heteroidentificação para validar a autodeclaração de cor e raça, entendendo que não é possível definir com exatidão quem é negro(a) no Brasil em virtude da miscigenação. De acordo com diversos(as) intelectuais e pesquisadores(as) da ABPN, isso não procede, visto que no país o racismo está ligado ao fenótipo da população, então, para se definir o público da política, é só se atentar para quem vivencia o racismo no Brasil; e

3) Projetos que não incidem exatamente sobre a questão racial, mas a depender de como forem efetivados poderão vir a ampliar ou diminuir as vagas ofertadas para pessoas negras, nas instituições.

Na legislatura passada, foi possível perceber que os projetos com características restritivas andaram mais rapidamente do que os projetos com características ampliativas, principalmente aqueles que visavam retirar o critério racial das cotas, deixando apenas a chamada reserva social.

É possível perceber, com isso, que não há exatamente resistência à Lei de Cotas, sendo bem aceitas as reservas para egressos da escola pública, para pessoas com baixa renda ou deficiência. O ataque não tem sido às cotas, mas ao critério racial nela contido e à política que controla a garantia das pessoas negras prestes a ingressar nas universidades. Isso expressa claramente o racismo que busca esconder os enormes avanços para a população negra com o estabelecimento da Lei 12.711 - ou como diria a intelectual negra Lélia Gonzales, mantendo, assim, o teatro da democracia racial no país.

Há Projetos de Lei que, no âmbito dos 50% das vagas reservadas estabelecidas na Lei 12.711, propõem uma ampliação do percentual de cotas para pessoas com deficiência, ou mesmo buscam estabelecer uma fatia delas para a população nativa do Estado onde se localiza a IFES ou para atletas de alto rendimento. São exemplos que acabam afetando o percentual reservado aos(às) negros(as).

Somos claramente a favor das políticas afirmativas para todos. No entanto, é preciso proteger e ampliar a lei para potencializar a inclusão de pessoas negras nas universidades. É preciso combater os retrocessos proposto por alguns PL que visam modificar a Lei de Cotas e não fomentar disputas nocivas entre os(as) titulares de direito aos espaços universitários.

Para além disso, é preciso ampliar a política, garantido às pessoas que entram nas Universidades condições materiais de permanência, como auxílios e bolsas de estudos.

A sociedade brasileira precisa continuar acompanhando esse debate e o movimento nas casas legislativas de perto, pois, como já mostramos, cotas sociais somente não dão conta de combater o racismo estrutural e promover e valorizar a diversidade de nosso Brasil.

 

https://www1.folha.uol.com.br/blogs/sou-ciencia/2023/06/mito-da-democracia-racial-prejudica-cotas.shtml

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