Publicado em 12/05/2023 - 11:44 / Clipado em 12/05/2023 - 11:44
Artigo: O fake-card e a bula da Pfizer
Pedro Arantes
Soraya Smaili
Maria Angélica Minhoto
O novo escândalo envolvendo a família Bolsonaro e seu ajudante de ordens, agora com a falsificação do cartão de vacina às vésperas da fuga para os EUA e que veio à tona após ação da Polícia Federal e prisões, está sendo destacado por envolver até seis tipificações de crimes previstos no código penal. O ex-presidente fez um pronunciamento lacônico sobre o caso, reiterando não ter tomado a vacina, mas algo tem passado batido nas análises até o momento. Segundo Bolsonaro, “não tomei a vacina porque li a bula da Pfizer”. Eduardo Bolsonaro repete a mesma justificativa em tweet: “Bolsonaro sempre disse que não tomou a vacina porque leu a bula da Pfizer”.
Para além dos crimes de falsificação e formação de quadrilha, essa parece ser a saída “baseada em evidência” que a família Bolsonaro e a horda negacionista querem nos fazer crer. O ex-presidente, de notório anti-intelectualismo e aversão a livros, surpreende: leu algo, leu a bula.
O movimento antivacina sempre pretendeu dar uma face (ou máscara) de seriedade científica para o negacionismo, usando dados distorcidos, depoimentos emocionais de familiares de supostas vítimas, artigos fajutos ou não aprovados pelos pares (os preprints), ou ainda publicados em revistas obscuras, sem reconhecimento acadêmico e sistemas de verificação e controle. Quando Andrew Wakefield emplacou o artigo mais famoso antivacina da história, em 1998 na Revista Lancet, afirmando que a tríplice causava autismo, foi desmascarado após denúncias de outros cientistas. A revista se retratou, retirou o artigo do ar e o médico inglês teve sua licença profissional cassada. Imigrado para os EUA, retomou de lá o ativismo antivacina e seguiu fazendo estragos, agora com a velocidade e amplitude das redes sociais e seu ecossistema extremista.
Ora, o que diz então a bula da Pfizer que levou, supostamente, o presidente a não se vacinar? Em primeiro lugar, que se trata de medicamento especialmente desenvolvido para combater o vírus: “Comirnaty é uma vacina para prevenir a doença Covid-19 provocada pelo vírus SARS-CoV-2 em indivíduos com idade igual ou superior a 6 meses de vida.” Os efeitos colaterais mais comuns apontados são normais em vacinas: dor de cabeça, dores musculares, febre, dor no local da injeção, náusea. Os demais efeitos são raros ou raríssimos. Contraindicações são para quem possa ter reação alérgica aos componentes da vacina, doença infecciosa aguda, imunossuprimidos, problemas de coagulação e grávidas. E Bolsonaro não apresenta, que se saiba, nenhuma dessas condições.
Todo medicamento envolve uma avaliação de riscos e benefícios. A eficácia da vacina Pfizer/BioNtech é de cerca de 95% após a segunda dose. Lembremos, a Pfizer enviou sete propostas ao governo brasileiro, não respondidas pelo Ministério da Saúde, entre agosto e novembro de 2020, o que atrasou sua aplicação no Brasil em ao menos 3 meses, atrasando o plano de vacinação e sua amplitude.
Já que a família Bolsonaro considera que a ciência por trás das vacinas e que orienta a melhor conduta na pandemia pode ser resumida a bulas, não seria o caso de olhar o que diz a bula da Hidroxicloroquina, que foi tão defendida pelo governo? O próprio Bolsonaro fez ao menos 23 discursos oficiais defendendo a cloroquina, o Ministério da Saúde contrariou cientistas e a OMS e seguiu autorizando o uso da cloroquina até o fim do governo Bolsonaro. O Brasil foi o único e último país a seguir essa recomendação sem base científica.
Ora, o que diz a bula da Hidroxicloroquina? Trata-se de um fármaco antigo, conhecido, que se sabe os usos terapêuticos para malária, diferentes tipos de reumatismo, para infecções dermatológicas associadas a excesso de sol. Não há nenhuma indicação na bula para uso contra a Covid-19, ou para tratar insuficiência respiratória. A lista de reações adversas é enorme, incluindo disfunções gastrointestinais, hepáticas, ópticas, do sistema nervoso, além de reações cutâneas, vertigens e risco de anorexia. Novamente, o cálculo de risco e benefício é central para a escolha do medicamento e do tratamento. Como não há qualquer benefício comprovado cientificamente da hidroxicloroquina para o combate à Covid-19, resta ao paciente o risco de reações adversas desnecessárias em um momento crítico que exige do corpo a capacidade de atuar no combate ao vírus — ou seja, não pode estar fragilizado por efeitos colaterais de um remédio ineficaz.
Em 17 de junho de 2020, um mês após a declaração de Pandemia de Covid-19 (em 11 de maio de 2020), a Organização Mundial da Saúde publicou declaração contra o uso de hidroxicloroquina por não apresentar benefícios ou reduzir mortalidade de pacientes Covid-19. E, pior que isso, havia estudos consistentes relatando aumento de eventos adversos associados ao medicamento, incluindo arritmias cardíacas e disfunção hepática, levando ao aumento de mortes em pacientes com Covid que fizeram uso da cloroquina.
A conduta criminosa do ex-presidente com seu cartão de vacinação, de familiares e de assessores, é apenas a ínfima ponta do iceberg. Para além desse último escândalo, pontual, mas emblemático, estamos diante de crimes contra a humanidade cometidos por Bolsonaro e equipe na condução da gestão da pandemia no Brasil. O relatório da CPI da Pandemia, o Relatório produzido pelo CEPEDISA da Faculdade de Saúde Pública da USP, e os livros Cloroquination e Sem Máscara: o governo Bolsonaro e a aposta pelo caos são eloquentes na listagem de evidências e crimes cometidos pelo Governo Federal e sua “rede de necropolítica”, que envolveu militares, gabinete paralelo, planos de saúde, farmacêuticas, médicos negacionistas e associações e conselhos profissionais entre coniventes e com condutas antiéticas movidas por alinhamento político extremista.
O Centro SoU_Ciência, entre outros grupos de pesquisa e associações de familiares de vítimas da Covid, tem atuado para manter viva a memória e exigir justiça e reparação. O capítulo mais vergonhoso da história da saúde pública no Brasil não pode ser varrido para debaixo do tapete. É preciso instaurar um Tribunal que acelere o julgamento destes crimes e de seus autores, para que isso não mais se repita. Sem anistia para os crimes da pandemia!
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