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Publicado em 22/03/2023 - 07:29 / Clipado em 23/03/2023 - 07:29

Política afirmativa, democratização do acesso à universidade e propostas de avaliação


Lei de cotas teve papel central para a entrada de negros, indígenas e estudantes oriundos de escolas públicas nas universidades públicas

 

O artigo demonstra a centralidade da lei de cotas no processo de democratização do acesso ao ensino superior, sinalizando sua importância para a entrada de estudantes oriundos de escolas públicas, negros e indígenas nas universidades públicas. Ao mesmo tempo em que reconhece que algumas Instituições Federais de Ensino Superior e coletivos de pesquisadores envidaram esforços para avaliar a política de cotas, o artigo chama a atenção para a ausência de avaliações sistemáticas e abrangentes da lei de cotas na sua primeira década de existência, que deveriam ter sido capitaneadas pelo Ministério da Educação. Por fim, propõe 10 pontos para discussão no processo de monitoramento, avaliação, aperfeiçoamento e revisão da lei 12.711/2012.

As políticas de ação afirmativa aprovadas no início do milênio nas universidades estaduais do Rio de Janeiro (Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Universidade Estadual do Norte Fluminense – UENF, em 2001), na Universidade do Estado da Bahia (UNEB, em 2002), e na Universidade de Brasília (UnB, em 2003), abriram um novo capítulo no processo de democratização do acesso e permanência no ensino superior. Frutos de discussões públicas e avanços legais com participação crucial de ativismo sócio-político, as medidas tomadas por aquelas universidades indicam o protagonismo negro e antirracista no interior das próprias instituições – como foi, por exemplo, o caso da UnB[1] – como força propulsora essencial para o estado atual em que nos encontramos. Aquelas primeiras iniciativas colocaram a discussão sobre as ações afirmativas no cenário nacional. Provocaram o Supremo Tribunal Federal (STF) a se pronunciar sobre a constitucionalidade da política de cotas raciais por meio da ADPF 186, abrindo caminho para a aprovação da Lei 12.711/2012, conhecida como a Lei de Cotas. Em que pese o fato de que algumas universidades tivessem à época programas de cotas raciais mais avançados do que o proposto pela Lei, sua promulgação obrigou todas as universidades federais a adotar reserva de vagas raciais, ampliando substancialmente o número de estudantes negros e indígenas. No momento de aprovação da Lei 12.711, a maioria das 59 universidades federais existentes já adotava alguma forma de ação afirmativa, sendo que 23 tinham sistema de reserva de vagas raciais, na forma de cotas ou subcotas.[2] (Figura 1)

Ainda que a Lei 12.711/2012 subordine a dimensão racial a outras dimensões sociais (tipo de escola de proveniência e renda familiar), seu maior esteio proveio do ativismo negro e antirracista que se intensificou no Brasil na década de 1990. Dois eventos daquele período são dignos de nota: a Marcha Zumbi dos Palmares, promovida pelo movimento negro, em 1995, e a importante participação do movimento negro na III Conferência Mundial da ONU contra o Racismo, realizada em 2001, em Durban, África do Sul. O reconhecimento da participação do movimento negro na gestação da atual lei de cotas, que beneficia estudantes de escola pública, famílias de baixa renda e pessoas com deficiência, é a confirmação da máxima de que quando o movimento negro dá um passo à frente, outros grupos sociais também avançam, em virtude de seu caráter de vanguarda no enfrentamento ao racismo como fratura em uma sociedade que se pensa democrática, a despeito da desigualdade e das violações de direitos. (Figura 2)

Além de reconhecer a importância das políticas de ação afirmativa para a democratização do acesso à universidade, é preciso recuperar outras políticas centrais para a expansão de todo o sistema de ensino superior no Brasil. Fazem parte deste conjunto “democratizante” de políticas o Programa Universidade para Todos (Prouni/2005), o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), o Programa de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI/2007), o Sistema de Seleção Unificado (SISU/2010) e a adoção do Exame Nacional de Ensino Médio (ENEM).[3] Todas essas medidas, de alguma forma conjugadas com as políticas de permanência, especialmente, o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES/2008) e o Programa Bolsa Permanência (PBP/2013), estão norteadas pelos Planos Nacionais de Educação (PNE), que estabelecem horizontes ambiciosos no que concerne a um sistema de ensino de caráter realmente transformador.

Desse conjunto de políticas envolvendo tanto o setor público quanto o setor privado, o número de matrículas em cursos de graduação passou de 1,8 milhão, em 1995, para 8,6 milhões, em 2019. E a taxa líquida de escolarização da população de 18 a 24 anos saltou de 6,8% para 25,5% no mesmo período.[4] (Figura 3)

“O reconhecimento da participação do movimento negro na gestação da atual lei de cotas, que beneficia estudantes de escola pública, famílias de baixa renda e pessoas com deficiência, é a confirmação da máxima de que quando o movimento negro dá um passo à frente, outros grupos sociais também avançam.”

Não obstante a desigualdade de renda ainda seja gritante no que se refere ao sistema de ensino superior, houve alguma diminuição ao longo das últimas duas décadas. Considerando a composição socioeconômica, por renda domiciliar per capita, dos jovens de 18 a 24 anos que frequentam o ensino superior, percebe-se que os estudantes pertencentes ao quinto mais rico eram em torno de 75% no início dos anos 2000 e passaram para algo em torno de 40%, em 2019. Já os estudantes do primeiro quintil mais pobre passam de 1,1% para 6%; e os do segundo quintil passam de 1,6% para 10,1%.[5] Desigualdade ainda absurda, porém, em processo de queda.

As desigualdades de renda combinam-se tanto com as dimensões raciais quanto com as de gênero. Embora a presença de estudantes negros tenha crescido visivelmente no ensino superior, a presença de negros e indígenas passa de 15% em meados da década de 1990 e chega a 39%, em 2019.[6] Há avanços no que concerne à presença das mulheres no ensino superior, porém as suas presenças não se dão de forma uniforme em todos os cursos superiores, sendo predominantes sobretudo em carreiras de menor prestígio.

É neste contexto de democratização do ensino superior que se coloca a Lei 12.711/2012 – alterada pela Lei 13.409/ 2016, que inclui a reserva de vagas para pessoas com deficiência nas instituições federais de ensino superior e de ensino técnico de nível médio.

A lei de cotas estabelece: i) no seu Artigo 1º, que as instituições federais de ensino superior[7] reservarão 50% das vagas de todos os cursos de graduação para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas; ii) no parágrafo único do Artigo 1º, que no preenchimento das vagas de que trata o Artigo, 50% deverão ser reservadas a estudantes de famílias com renda igual ou inferior a 1,5 salário mínimo per capita; iii) no seu Artigo 3º, que em cada instituição federal de ensino superior às vagas reservadas deverão ser preenchidas, por curso e turno, por candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas (PPI) e por pessoas com deficiência em proporção no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da federação onde estiver localizada a instituição federal, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

A adoção da lei de cota nas universidades federais, até pouco tempo vistas como espaços das camadas privilegiadas da sociedade brasileira, tem transformado o perfil dos estudantes de graduação. Pesquisas tem constatado que os maiores beneficiados pela lei de cotas são os estudantes PPI de escola pública. Mais ainda, os cursos mais transformados pela lei de cotas – no sentido de ter uma maior presença de estudantes PPIs e de escolas públicas – são aqueles mais competitivos (com maior número de candidatos por vaga). A combinação escola pública, baixa renda, PPI teve um impacto significativo nesses cursos. A presença de estudantes com tal perfil passou da ordem de 10% a 20% em 2012, para 20% a 40%, em 2016, nos cursos de Direito, Engenharia Elétrica e Medicina. Por exemplo, a presença de tais estudantes no curso de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC) passou de 1% para 27,3% entre 2012 e 2016; Engenharia Elétrica na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), de 0% para 13,7%; e Medicina na Universidade Federal de Rondônia (UNIR) de 0% para 37,8%.[8] Conquanto possa haver imprecisões quanto ao perfil racial dos estudantes do ensino superior público, devido à ausência do processo de verificação da autodeclaração racial dos candidatos, não há dúvidas que houve um visível aumento do número de estudantes pretos, pardos e indígenas nas universidades federais.

“A adoção da lei de cota nas universidades federais, até pouco tempo vistas como espaços das camadas privilegiadas da sociedade brasileira, tem transformado o perfil dos estudantes de graduação.”

Ainda que sejam evidentes os efeitos positivamente transformadores das políticas de ação afirmativa, muito ainda pode ser feito para que tal política cumpra melhor seus objetivos de democratização do acesso e permanência nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES). Durante os 10 primeiros anos de vigência da Lei (2012 a 2022) esperava-se que houvesse um acompanhamento e avaliação sistemáticos de tal política para que na sua revisão fossem feitos aperfeiçoamentos e aprimoramentos. Um eventual processo de revisão da lei deveria ser precedido de um processo de acompanhamento e avaliação, o que não foi feito devido à inação do Ministério da Educação em efetivar o Comitê de Acompanhamento e Avaliação das Reservas de Vagas, previsto no Decreto n.º 7.824, de 11 de outubro de 2012; e também devido a um governo avesso a dados científicos e à política de ação afirmativa.

Num cenário de iminente revisão da política de cotas, como nos anos de 2021 e 2022, diversos projetos de lei visando algum tipo de alteração da 12.711/2012 foram apresentados no Congresso Nacional. Entre os projetos que mais avançaram nas discussões públicas e diálogos com representantes da sociedade civil, especialmente com entidades ligadas ao movimento negro e pesquisadores antirracistas, destaca-se o PL 3422/2022 de autoria de Valmir Assunção (PT/BA), Benedita da Silva (PT/RJ) e Carlos Zarattinni (PT/SP). Aquele projeto trouxe algumas proposições que deverão animar os deputados e senadores da nova legislatura (2023-2026): primeiramente, a proposta de revisão em cinquenta anos, a contar da data de publicação da lei (portanto, em 2062). Em segundo lugar, não somente a manutenção, mas a ampliação das atuais bolsas de permanência, a fim de atender os novos desafios postos pela entrada de estudantes tão diversos do ponto de vista social e racial. Em terceiro lugar, a criação de um Conselho Nacional das Ações Afirmativas no Ensino Superior, que ficaria responsável pelo monitoramento e avaliação da política e, a cada cinco anos, pela produção de relatórios de avaliação.

Além dessas diretrizes gerais já discutidas coletivamente e presentes no supracitado Projeto de Lei, apresento 10 pontos para as reflexões e discussões futuras tendo como objetivo o aprimoramento, avaliação e monitoramento da política de cotas:[9]

1) Alinhado à criação de um Conselho Nacional das Ações Afirmativas, faz-se necessário que o Ministério da Educação, com o Ministério da Igualdade Racial e o Ministério dos Povos Indígenas, desenvolva uma política indutora da avaliação e acompanhamento da política por parte de cada IFES. Em que pese que algumas IFES e coletivos de pesquisadores[10] tenham envidado esforços para avaliar a política de cotas, não podemos afirmar que temos uma visão abrangente dos efeitos das cotas. É necessário que todas as IFES – especialmente as universidades federais – tenham dados sobre desempenho, retenção, evasão e conclusão de todos seus estudantes – especialmente, cotistas – a fim de não somente avaliar as políticas de cotas, mas fazer as correções necessárias.

2) É preciso avaliar, otimizar e ampliar os recursos da política de assistência estudantil na universidade e sobretudo as bolsas permanência. Todo este processo de democratização da universidade (não somente a lei de cotas, mas o Reuni e o Sisu) trouxe um alunado diferente para os corredores universitários. Muitos são os primeiros de suas famílias a entrar nas universidades públicas federais. Esses estudantes enriquecem as universidades com suas histórias de vida, novos questionamentos, e mais desafios. Não somente o Programa Bolsa Permanência (PBP) – destinado prioritariamente a estudantes indígenas, quilombolas e pessoas em vulnerabilidade socioeconômica – mas o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) precisam ser redimensionados para atender as novas demandas trazidas pela democratização do ensino superior. Quanto ao PNAES, é necessário que a política de cotas esteja presente nos critérios de distribuição dos benefícios de assistência (moradia, auxílio alimentação, etc.). É fundamental que estudantes negros e indígenas sejam priorizados entre aqueles em vulnerabilidade socioeconômica.[11]

3) Faz-se necessária a adoção das bancas de heteroidentificação para efeito da verificação complementar da autodeclaração de estudantes negros. Apesar do Ministério da Educação ter regulamentado os critérios de comprovação de renda e de comprovação de deficiência (Art. 9º do Decreto n.º 7.824/2012), foi omisso em relação aos procedimentos de verificação complementar da autodeclaração. No presente momento, diversas universidades já adotam tal procedimento como uma resposta à avalanche de denúncias de fraude feitas pelos movimentos sociais e órgãos de controle. Por ora, na ausência de um regulamento por parte do Ministério da Educação, cada universidade criou seu próprio mecanismo de controle de fraudes. A ausência do procedimento de verificação torna as IFES suscetíveis a aprovarem pessoas que não deveriam ocupar suas vagas. Mesmo que fraudes sejam investigadas e seus autores punidos quando comprovada a má-fé, esta é uma medida cara e dolorosa possível de ser evitada com a adoção de tais bancas.[12]

4) É preciso verificar se os estudantes indígenas presentes nos corredores das universidades entraram pela reserva para PPI ou entraram por outra forma de ação afirmativa. Temos como hipótese que o número de alunos indígenas beneficiados pela lei 12.711 é mínimo, pois boa parte dos indígenas presentes nas universidades brasileiras entraram por processos seletivos específicos para esses estudantes. O entendimento de que o sistema de educação indígena é singular e que a formação que oferece não habilita necessariamente para o Enem levou algumas universidades – como a UnB – a adotar um vestibular específico para candidatos indígenas. Esse procedimento tem sido responsável pela entrada de aproximadamente 80 indígenas por ano nos mais diversos cursos oferecidos pela universidade. Esta experiência pode e deve ser estendida para outras universidades do país.

5) Também é preciso reconhecer a singularidade do candidato quilombola. Pouquíssimos quilombolas presentes nos bancos das universidades públicas entraram pela lei 12.711. Os negros previstos na lei – pretos e pardos – são majoritariamente não quilombolas. A presença de indígenas e quilombolas nas universidades brasileiras, além de sanar uma dívida história (princípio de uma justiça reparatória) e representar uma política de equidade social (princípio de uma justiça redistributiva), é também uma política em prol de uma diversidade epistêmica (justiça cognitiva), em nome do enriquecimento do conhecimento sobre um Brasil diverso, algo que pode ser combinado com os ideias do bem-viver ao permitir que futuros profissionais indígenas e quilombolas possam tanto retornar às suas comunidades quanto participar da construção de uma vida menos desigual social e economicamente.

6) Dados apresentados pelo Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas públicas indicam que 74% das famílias brasileiras possuem renda per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo. A Lei de Cotas reserva metade das vagas destinadas a estudantes provenientes de escola pública para as chamadas famílias de baixa renda e a outra metade para as famílias de alta renda. Isto significa que o critério de renda previsto na lei provoca uma distorção na distribuição das vagas: há proporcionalmente mais candidatos disputando as vagas destinadas a famílias com renda até 1,5 salário mínimo per capita e, inversamente, menos estudantes com renda acima deste valor disputando as demais vagas destinadas a estudantes da rede pública. Entre os estudantes provenientes de famílias de alta renda (acima de 1,5 salário mínimo per capita), sabe-se que muitos são oriundos das escolas militares e da rede federal de ensino médio, cuja infraestrutura, via de regra, não se estende a todas as escolas administradas pelos municípios e estados. Diante dessa constatação, cabem avaliações e discussões públicas com a participação de especialistas sobre a viabilidade de revisão do critério de renda, tendo o aperfeiçoamento da lei como objetivo.[13]

7) Há uma distorção entre vagas reservadas para a ampla concorrência – que atende majoritariamente estudantes de escolas privadas – e estudantes de escola pública. Uma avaliação do Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas constatou que, em 2019, o percentual de alunos cursando o último ano do ensino médio na rede pública era de 87%, portanto, bastante superior ao percentual de vagas previsto na lei. Isto significa indiretamente dizer que o percentual de vagas destinado aos estudantes de escolas privadas está superdimensionado. Este também é um item importante para um eventual ajuste da lei.

8) Na operacionalização da lei tem se observado em algumas universidades a reprovação de candidatos concorrentes às cotas, mesmo que tenham nota final suficiente para serem aprovados no grupo de ampla concorrência ou em grupos de concorrência menos restritiva. Em algumas universidades, os candidatos optantes por uma política de cotas podem concorrer apenas entre aqueles que optaram por aquelas cotas. Por exemplo, um candidato de escola pública negro concorre pelas vagas destinadas exclusivamente a este grupo, mesmo que tenha nota suficiente para ser aprovado entre candidatos de escola pública não PPI ou na ampla concorrência. Nesse caso, isso significa que a política de cotas tem funcionado como teto e não como piso. Segundo o relatório produzido pelo Comitê de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas, em 2021, essa distorção foi observada em 1.520 cursos, correspondendo a aproximadamente 30% dos cursos ofertados. Em números absolutos, 8,7 mil cotistas poderiam ser aprovados nas vagas de ampla concorrência e não o foram. Portanto, é necessário corrigir as regras de operacionalização da política de cotas, permitindo aos candidatos cotistas concorrerem às vagas de ampla concorrência e às vagas menos restritivas.

9) É necessária uma ampliação da política de cotas para a pós-graduação. As discussões sobre acesso e permanência no ensino superior não podem ficar restritas somente à graduação, mas devem envolver esse nível de aperfeiçoamento na formação que é mais devotado à pesquisa e à produção do conhecimento. Já temos algumas universidades que adotam tais políticas na pós-graduação,[14] porém é necessário um estímulo por parte do Ministério da Educação para que todas as universidades e todos os Programas de Pós-Graduação de todas as áreas do conhecimento as adotem. É preciso que este tema seja também discutido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelas fundações estaduais de fomento à pesquisa para que as populações negras, indígenas e quilombolas estejam presentes na produção de pesquisa no país e na diversificação e enriquecimento do conhecimento.

10) Por fim, e não menos importante, algo que ainda pertence ao campo das políticas de ação afirmativa, mas extrapola a lei 12.711/2012. As reflexões acerca do acesso não podem ficar restritas somente à graduação e à pós-graduação, mas precisam contemplar o acesso à carreira docente de nossas universidades. Até o presente, o corpo docente das universidades federais é majoritariamente branco. Temos uma lei que prevê a abertura de vagas nos concursos públicos para candidatos negros, a Lei 12.990/2014, prestes a encerrar seu período de vigência, em julho de 2024. Durante seus 10 anos de existência, as universidades federais deliberadamente se omitiram em cumprir a reserva de 20% de suas vagas nos concursos públicos para docentes. As universidades, ao fragmentarem as vagas entre as unidades acadêmicas, ofertando menos do que três vagas em seus concursos – número mínimo para a aplicação da reserva – terminam por fugir à regra de aplicação da reserva de vagas. Pesquisadores constataram que menos de 5% das vagas foram reservadas entre 2014 e 2018 e que menos de 1% delas foi preenchido por professores negros. Portanto, a carreira docente pouco mudou em virtude da lei de cotas no serviço público, ainda que professores negros e indígenas tenham entrado na carreira docente a despeito da lei.[15]

“A universidade de hoje é uma universidade bem melhor do que a anterior às políticas de ação afirmativa. Uma universidade que finalmente começa a ter a cara e a cor do Brasil.”

Esses são apenas 10 pontos que podem estar no debate sobre avaliação, monitoramento, revisão e renovação das leis de cotas no país. Há um intenso debate entre especialistas, que contribuirá com o aperfeiçoamento dessa política. Para que ampliemos os pontos a se discutir, torna-se fundamental a produção de dados de avaliação das políticas. Embora tenhamos que aprimorar os dados para termos uma análise mais completa da lei de cotas, é certo que tal política tem sido exitosa no processo de inclusão sociorracial e na redução das desigualdades no acesso ao ensino superior. Apesar dos cortes de financiamento de recursos públicos nos últimos 10 anos e de todos os desafios trazidos por um alunado com um perfil tão diferente do que ocupava os bancos universitários em décadas passadas, a universidade de hoje é uma universidade bem melhor do que a anterior às políticas de ação afirmativa. Uma universidade que finalmente começa a ter a cara e cor do Brasil.

 

Joaze Bernardino-Costa

Joaze Bernardino-Costa é professor do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Bolsista produtividade do CNPq. É membro do Sou-Ciência e do Consórcio Ações Afirmativas, coordenado nacionalmente pelo Grupo de Estudos Multiculturalismo e Ação Afirmativa e pelo Afro-Cebrap. Integra atualmente uma rede internacional de pesquisa sobre praticas de racialização e promoção da igualdade racial no Brasil, África do Sul, Reino Unido e Suécia, financiada pelo Swedish Research Council.

 

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