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 Blog GH - Gabriel Hammer

Publicado em 29/01/2022 - 08:04 / Clipado em 31/01/2022 - 08:04

Estudos mostram benefícios de cotas raciais para a universidade


Aumento da inclusão e da diversidade aconteceu sem perda de qualidade acadêmica. Pesquisa pioneira avaliou todos os ingressantes entre 2014 e 2018 e não viu diferença significativa de desempenho entre cotistas e não cotistas.


Vermelho – O Projeto de Lei 73/1999 instituiu reservas de vagas de cada turno e de cada curso das instituições federais de ensino superior para os estudantes de escolas públicas, de famílias com renda inferior a 1,5 salário mínimo per capita e por autodeclarados pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. O PL foi sancionado na forma da lei 12.711, em 29 de agosto de 2012. O texto estabelecia que a lei deveria ser submetida a uma revisão após o transcurso de dez anos. Este prazo se encerra, então, em agosto deste ano.

Os argumentos contra a lei de cotas expressam uma enxurrada de críticas despejada sobre as propostas de políticas de ações afirmativas nas universidades quando elas começaram a ser debatidas, no início do século. Entre elas, opositores sustentavam que a inclusão de pretos, pardos e pobres no ensino superior derrubaria o nível acadêmico; que a adoção de cotas exclusivamente sociais bastaria para promover a inclusão; ou, ainda, que seria mais lógico adotar outros modelos, como a bonificação por pontos a certos grupos considerados prioritários, sem que fosse preciso recorrer à reserva de vagas. Porém, após uma década de vigência da lei 12.711, já há pesquisas sobre os efeitos da adoção do sistema de cotas nas instituições públicas de ensino superior, tanto federais quanto estaduais, capazes de desconstruir essas críticas.


Cotas sociais ou bônus bastariam para promover inclusão racial?

“Antes da lei 12.711, as universidades federais de Uberlândia (UFU) e a de Minas Gerais (UFMG), por exemplo, adotaram as chamadas cotas sociais, porque entendia-se que, ao oferecer vagas para pessoas em situações de vulnerabilidade econômica, pertencentes a famílias de baixa renda, automaticamente o problema do racismo seria resolvido”, conta Régis Rodrigues Elisio, mestre em história social pela UFU, professor-pesquisador do Observatório da População Negra da Universidade Zumbi dos Palmares e docente de educação básica da rede estadual paulista.

“Mas o que se vê a partir dos resultados das seleções é que solucionar a questão de classe não resolve o problema da raça, porque estamos tratando de estruturas diferentes. O racismo faz com que as pessoas negras, ainda que em situação econômica equiparada (negros pobres comparados a brancos pobres), sofram maior exclusão escolar. Uma coisa não corresponde à outra. Por isso damos nomes distintos a elas. Para combater o racismo, precisamos de políticas de promoção de igualdade racial. E para promover ações voltadas contra a pobreza, você adota ações voltadas à realidade sócioeconômica. Se não são problemas iguais, é preciso adotar tratamentos diversos.”

Adriana Alves confirma essa percepção. “O que eu mais ouvia na USP era a crítica pretensamente sofisticada da superioridade das cotas sociais sobre as raciais. Respondo assim: todos os relatórios do Inep mostram que se você for ranquear os alunos de mesma escola, mesma cercania, mesmo índice de vulnerabilidade econômica, primeiro vão ficar, em desempenho, as meninas brancas, depois os meninos brancos, depois as meninas negras e por último os meninos negros.” Ou seja, mesmo numa mesma favela, famílias brancas conseguem ter condições socioeconômicas e educacionais melhores que famílias negras, submetidas a práticas racistas que aquelas famílias brancas não estão sujeitas.

Um  estudo   dos economistas Renato Schwambach Vieira, da UnB, e Mary Arends-Kuenning, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign (EUA), avaliou mudanças no perfil de alunos nas universidades federais antes da lei 12.711, entre os anos de 2004 e 2013.

A pesquisa analisou dados de estudantes calouros aprovados em 48 universidades federais de todo o país. Os pesquisadores tomaram por base informações sociais e pessoais apresentadas pelos estudantes do primeiro ano do curso universitário que se inscreveram no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE), entre elas raça, renda familiar e escola onde cursaram o ensino médio. No total, foram examinados os dados de 170.555 estudantes, classificados como brancos, pretos, pardos, amarelos ou indígenas, aprovados em 37 carreiras de 1.025 diferentes programas de graduação, e que se submeteram ao ENADE entre 2004 e 2010.

Uma vez que a maior parte do período estudado antecedia a promulgação da lei 12.711, as universidades federais eram consideravelmente livres para adotar ou não ações afirmativas para facilitar o ingresso em suas fileiras. Além disso, também possuíam autonomia para estabelecer seus próprios critérios, que podiam ser sociais, raciais, uma combinação de ambos ou seguir outros indicadores. Na amostra selecionada, 34 instituições adotaram alguma ação afirmativa. Destas, 20 adotaram a cor da pele como indicador de seleção, sendo que destas 17 adotaram também critérios sócio-econômicos. Apenas três universidades adotaram somente critérios raciais.

Ao comparar os dados de ingresso das universidades que adotavam critérios étnico-raciais e sociais em suas políticas de ação afirmativa com os das instituições que optavam apenas por indicadores sociais, a dupla de pesquisadores demonstrou que no primeiro grupo houve um aumento de quase 20% na presença de estudantes pretos e pardos em suas salas de aula, enquanto que no segundo grupo o crescimento foi de apenas 1% (veja arte abaixo).

Para evitar a adoção do sistema de cotas, desde 2004 a Unicamp oferecia um sistema de bônus, na forma de pontos extras contabilizados no vestibular, a estudantes oriundos de escolas públicas e a pretos e pardos por meio do Programa de Ação Afirmativa e Inclusão Social (PAAIS). A política de bonificação acabou sendo substituída pela de cotas em 2017 porque a primeira não estava atingindo a representatividade da população negra (só avançou de 18,9% em 2005 para 21,8% em 2016). Em 2019, primeiro ano dos sistemas de ingresso com cotas étnico-raciais, 35,1% de pretos e pardos entraram na Unicamp. Segundo o IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Trimestral, 1º trimestre de 2020), a população negra soma 40,6% dos 46 milhões de habitantes do estado de São Paulo.


As cotas derrubaram a qualidade acadêmica?

Mário Sérgio Vasconcelos, Eduardo Galhardo, Fernando Frei e Edgar Bendahan Rodrigues, da Faculdade de Ciências e Letras (Assis) da Unesp, publicaram há pouco mais de um ano o estudo “Desempenho acadêmico e frequência dos estudantes ingressantes pelo Programa de Inclusão da Unesp”.

A Unesp foi a primeira das universidades estaduais paulistas a estabelecer um sistema de cotas raciais, em 2013. O modelo adotado pela Unesp estipula que 50% das vagas para cada curso de graduação e turno devem ser destinadas a alunos que cursaram integralmente o ensino médio em escolas públicas. E destas 50%, 35% são reservadas a pretos, pardos e indígenas.

Um aspecto metodológico diferenciado desse estudo é que não usou uma amostra, mas analisou dados da totalidade dos ingressantes. Foram vasculhados e sistematizados os dados referentes à população total de estudantes ingressantes na Unesp em cada um dos anos entre 2014 e 2018. As informações foram extraídas de um banco de dados oficial com 35.294 estudantes e 52 variáveis. Neste período, a Unesp ofereceu 38.525 vagas de graduação. Destas, 13.258 foram destinadas a estudantes oriundos da escola pública, e destas, 4.531 foram reservadas a pessoas que se declararam como pretos, pardos ou indígenas.

O estudo mostra que, entre 2013 e 2018, o percentual de alunos da Unesp oriundos do ensino público passou de cerca de 40% para 54,4%. Entre o grupo de pretos, pardos e indígenas, o percentual passou de cerca de 12% em 2014 para 18% em 2018.

Ao comparar o coeficiente médio de rendimento dos ingressantes na Unesp entre 2014 e 2017, a conclusão do quarteto – empenhado a dar continuidade à análise nos próximos anos – é clara: “Os dados coletados indicaram que não há diferenças relevantes de rendimento acadêmico entre os estudantes que ingressaram na Unesp pelo sistema universal e aqueles que ingressaram pelo sistema de reserva de vagas [veja tabela].”

O estudo também pondera que, quando a análise é feita agrupando os cursos segundo sua demanda social, surgem algumas diferenças com relação ao coeficiente os ingressantes oriundos das cotas raciais e da escola pública. “Tais dados podem indicar que é necessário o oferecimento de mais suportes aos alunos para a vivência universitária e a permanência estudantil, especialmente para egressos da escola pública em cursos de baixa demanda social”, escrevem os autores.

Outra avaliação do impacto das cotas no desempenho das universidades vem através de um relatório técnico recente, divulgado em 2 de dezembro de 2021 pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência, vinculado à Universidade Federal de São Paulo). O estudo teve como foco estudantes do ensino superior das áreas de educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, medicina, medicina veterinária, nutrição, odontologia e zootecnia, que participaram das provas do ENADE em 2013 e em 2019 (o mais recente), e procurou rastrear o impacto do sistema de cotas raciais sobre a performance acadêmica do corpo discente de diversas instituições federais de ensino.

Dentre as instituições públicas federais, foram selecionadas 6, e outras 6 particulares a título e comparação. Para monitorar a qualidade da performance dos alunos foi adotada a nota do exame de conhecimento específico do ENADE, que é realizado a cada três anos.

As análises, realizadas por Maria Angélica Pedra Minhoto, Cláudia Guedes Araújo Silva, André Luiz Dias Vieira, Rafael Andrade e Victória Lopes, demonstraram que em 5 das 6 federais, e em todas as particulares, houve um crescimento da nota média obtida pelos estudantes de saúde. Na UnB, ela passou de 52,25 para 55,30; na Universidade Federal Fluminense, de 22,6 para 55,47; Na Universidade Federal do Pará, de 43,21 para 47,11; Na Universidade Federal de Santa Catarina, de 50,03 para 57,64; e na Unifesp, de 35, 56 para 54,16. Na única que registrou decréscimo, a Universidade Federal da Paraíba, a redução foi de menos de meio ponto. Ou seja, após a adoção das ações afirmativas, a maior parte das instituições “teve um ganho na nota média da prova de conhecimentos específicos”, escrevem os autores.

“O que os dados mostram é que quando a universidade pública abriu as portas e ampliou a diversidade, ela melhorou”, diz Angélica Minhoto, que foi pró-reitora de graduação da Unifesp entre 2013 e 2017. “Nossa revisão bibliográfica também demonstrou que muitos trabalhos acadêmicos esperavam que o cotista desempenhasse pior, e muitas vezes seus autores escrevem, contra os dados, como se o desempenho fosse pior, seguindo um dogma de que necessariamente o cotista vai contaminar a universidade excelente”, complementa Cláudia Silva, mestre em psicologia escolar pela USP e doutoranda em educação pela Unifesp. “Nos surpreendeu esse discurso sutil mas bem presente em trabalhos que analisamos. Ficou claro o quanto esses estudos necessitam de um falseamento da realidade.”


Resistência a cotas não acabou

Mas os preconceitos e resistências a essa nova universidade ainda são muito grandes. “Você pode andar dentro da USP, da Unicamp, da Unesp e ainda vai encontrar muita gente que é contra as cotas. Você fala com uma pessoa que não leu nada sobre o assunto e ela julga ter argumentos fortíssimos de que as cotas são um equívoco. Por isso que nós temos de dar subsídio, com pesquisa, para ir quebrando essas opiniões pré-concebidas e preconceituosas que foram naturalizadas”, diz Mário Sérgio Vasconcelos, que dirige a Coordenadoria de Permanência Estudantil da Unesp.

Ainda no campo das análises quantitativas, um dado interessante tem sido revelado pelo Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer), uma ferramenta criada pelos economistas Michael França, Sergio Firpo e Alysson Portella, do Insper, para o jornal Folha de S.Paulo, com o objetivo de medir a exclusão que pretos e pardos sofrem em estratos privilegiados, como a fatia da população com diploma universitário. A metodologia do indicador se baseia em dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE (PNAD). O índice é um número que pode oscilar entre -1 e 1, em que zero equivale a um cenário no qual a presença de brancos e negros reflete exatamente seu peso em determinada população e resultados negativos indicam que os negros estão sub-representados.

Segundo o Ifer, o Brasil reduziu o desequilíbrio entre brancos e negros com ensino superior completo nas duas primeiras décadas deste século em 36%. A queda no Sudeste foi de 29%. Nesta região, a mais desigual e a que progrediu menos, os pretos e pardos de 30 anos ou mais com ensino superior completo somam 23 de cada 100 habitantes dessa faixa etária. O equilíbrio seria atingido com a proporção de 43 a cada 100.

Ou seja, ainda há muito a ser feito. Além de ignorar os séculos de escravização que constituem um marco e uma chaga da história brasileira, os apressados pelo fim da política de cotas também fecham os olhos para os dados das últimas décadas. Se a régua é a proporcionalidade, está evidente que a tarefa ainda não foi concluída.

A despeito de todo o acúmulo de uma série de pesquisas atestando o sucesso da política de cotas e desmontando argumentos contrários, paira o receio de que a revisão da lei 12.711, no segundo semestre, possa ter desfechos desagradáveis.


Do Jornal da Unesp


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