Publicado em 28/01/2022 - 09:51 / Clipado em 28/01/2022 - 09:51
Cotas nas universidades públicas completam 10 anos
Cotas para negros, indígenas e escola pública comprometem a qualidade do ensino?
Maria Angélica Minhoto
As cotas nas universidades públicas brasileiras são uma ação afirmativa que tem por objetivo a redução das profundas desigualdades educacionais, aumentando a possibilidade de acesso aos estratos da população que dela foram historicamente excluídos – como negros e negras, populações indígenas, egressos e egressas das escolas públicas de educação básica provenientes de famílias de baixa renda, além daqueles e daquelas que possuem algum tipo de deficiência física ou mental.
Junto com a expansão de vagas, a política de cotas tem sido decisiva para modificar o perfil dos estudantes das universidades públicas. Nas Instituições Federais de Ensino Superior, são reservadas no mínimo 50% de vagas, por curso e turno, para estudantes que fizeram todo o ensino médio público.
Desse total, 50% são reservadas aos oriundos de famílias com renda per capita igual ou inferior a 1,5 salário-mínimo. Além disso, um percentual de todas as vagas reservadas deve ser preenchido por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, tal como a proporção dessa população no Estado onde se localiza a instituição, segundo o último censo do IBGE (conforme determina a Lei Federal n. 12.711/2012). Para garantir a veracidade da autodeclaração, as Universidades têm comitês de heteroidentificação.
Uma consequência principalmente da luta dos movimentos negros, a política nacional de cotas para as federais entrou em vigor no final do ano de 2012, sem, no entanto, deixar de sofrer inúmeros questionamentos no debate público em relação a efetividade dessa forma de reparação histórica, bem como sobre os possíveis impactos que poderia produzir no ambiente acadêmico. Entre eles, comentários relacionados à queda na qualidade do ensino e da formação.
Após 10 anos de vigência da Lei e buscando fazer frente a esse tema candente com evidências empíricas, o SoU_Ciência vem analisando dados públicos do Ministério da Educação (MEC), relativos ao Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade), que avalia o rendimento dos concluintes dos cursos de graduação de todo o país.
Nossa intenção, para além de responder a essa dúvida pontual que ressoa no Brasil desde o início deste século, é contribuir com o debate nacional sobre o aprimoramento da Lei de Cotas, divulgando informações objetivas e de fácil compreensão, com base em dados públicos e confiáveis.
A revisão da Lei coloca em xeque uma das políticas afirmativas brasileiras de maior impacto no combate ao racismo e ao preconceito social. Não podemos retroceder e, de fato, devemos pensar em elementos adicionais às políticas públicas afirmativas. Estamos confiantes que seu aprimoramento com base em dados objetivos poderá viabilizar o direito à educação a todos os estratos da sociedade brasileira.
As análises que mostramos aqui revelam que devemos superar o temor de que as cotas promovem a diminuição da qualidade do ensino, visto que na principal avaliação do MEC o desempenho da maior parte dos concluintes das Federais aumentou após a instituição das cotas.
Com os dados das provas objetivas do Enade de 2013 e de 2019, que avaliaram a área da Saúde, a equipe do SoU_Ciência levantou o desempenho médio dos concluintes na prova de conhecimentos específicos em 14 Universidades Federais - aquelas que possuíam o maior número de estudantes matriculados no ano de 2019 -, além da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que é tradicional na oferta de cursos de excelência na área da saúde.
Os anos foram escolhidos por viabilizarem a comparação do desempenho de estudantes de mesma área de conhecimento (Saúde) e permitem comparar o desempenho geral de concluintes que não haviam ingressado pela Lei de Cotas (2013) com os que usufruíram da Lei (2019) no sétimo ano de sua vigência. - SOU_CIÊNCIA
Na Unifesp, a nota subiu consideravelmente no período. Entretanto, até 2012, havia na instituição um histórico de boicote ao exame, revertido nos anos seguintes. Esse fato pode ter reverberado sobre a disposição dos estudantes para fazerem o exame em 2013, o que poderia explicar o baixo resultado daquele ano.
Além disso, os dados levantados pelo SoU_Ciência e corroborados pelo Fonaprace revelam que em todas essas Universidades houve uma transformação sem precedentes: a comunidade estudantil ficou muito mais diversa em termos de renda familiar, de raça/cor/etnia, de tipos de ensino médio frequentado, de escolaridade dos pais, entre outros fatores.
Com isso, podemos afirmar com segurança que as Universidades Federais não são mais um reduto exclusivo das elites brasileiras, mas estão abertas a todos os estratos sociais e formam seus estudantes sem qualquer perda de qualidade, ao contrário!
Essa é uma excelente constatação, pois a educação, além de um direito individual, é um bem comum de interesse geral e não deve ser privilégio de poucos. No entanto, os esforços para manter e ampliar o processo de democratização da universidade precisam ser uma demanda de toda a sociedade.
Para que o Brasil possa continuar formando os jovens de todos os estratos sociais para os complexos desafios profissionais, científicos e tecnológicos contemporâneos e para o exercício pleno da cidadania com qualidade, é preciso que os cortes orçamentários sejam revertidos o quanto antes, restabelecendo-se o investimento substantivo em todo o sistema de educação brasileiro, além de combater com seriedade o racismo estrutural e os discursos de intolerância e ódio que circulam em nossa sociedade historicamente e no tempo presente.
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