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Publicado em 20/01/2022 - 09:11 / Clipado em 21/01/2022 - 09:11

Como são apuradas as suspeitas de reações e mortes por vacina


Estêvão Bertoni


Sistema de vigilância tem mostrado que efeitos adversos graves a imunizantes contra a covid-19 são raros e não devem causar preocupação


Uma fala do ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, com um número inexistente de mortes relacionadas à vacinação contra a covid-19 no Brasil tem alimentado discursos antivacinação na internet. O ministro disse em entrevista à rádio Jovem Pan, na segunda-feira (17), que o país havia registrado 4.000 mortes relacionadas à imunização. O número estava incorreto e se referia, na verdade, a casos suspeitos de efeitos adversos que foram notificados e estavam em investigação, o que ele reconheceu posteriormente.

Notícias sobre possíveis efeitos adversos das vacinas também têm gerado preocupações, e aparecido em mensagens que disseminam desinformação. Em Lençóis Paulista, no interior de São Paulo, uma suspeita de reação numa criança de dez anos fez a prefeitura suspender a campanha de imunização. O governo do estado mostrou na quinta-feira (20) que a criança tinha uma condição congênita até então desconhecida pela família, e descartou relação com a vacina.

O sistema da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) que monitora esse tipo de registro mostrava até a quinta-feira apenas 14 óbitos ligados à aplicação das doses no país, número estatisticamente insignificante dentro de um universo de mais de 343 milhões de vacinas contra a covid-19 administradas até janeiro de 2022. Mais de 159 milhões de brasileiros receberam ao menos uma dose. O número de mortes pelo novo coronavírus ultrapassa 621 mil.

Neste texto, o Nexo mostra como o processo de farmacovigilância vem sendo feito no país para monitorar a aplicação de vacinas contra a covid-19 e por que os dados não colocam em dúvida a segurança dos imunizantes utilizados nem devem causar preocupação.


O que é a farmacovigilância

A farmacovigilância é definida pela OMS (Organização Mundial da Saúde) como a “ciência e as atividades relacionadas à identificação, avaliação, compreensão e prevenção de efeitos adversos ou de quaisquer problemas relacionados ao uso de medicamentos”. Seu objetivo é produzir informações sobre os efeitos não esperados.

No caso específico das vacinas, a OMS recomenda desde 1991 que os países criem mecanismos de vigilância de eventos adversos pós-vacinação. Esses eventos adversos incluem qualquer ocorrência médica indesejada, que não precisa necessariamente ter relação causal com o uso de uma vacina.

No Brasil, esse tipo de monitoramento passou a ocorrer já em 1992, com a criação do Sistema Nacional de Vigilância de Eventos Adversos Pós-Vacinação, dentro do PNI (Programa Nacional de Imunizações).

Em 1998, foi publicado o “Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação”, e a atividade passou a ser feita em todo o país. Em 2000, foi implantado o Sistema de Informação de Vigilância de Eventos Adversos Pós-Vacinação, para coletar as informações dos estados e analisar de forma mais consistente os dados.

No caso da vacinação contra a covid-19, o Ministério da Saúde instituiu por meio de uma portaria de junho de 2021 o Comitê Interinstitucional de Farmacovigilância de Vacinas e outros Imunobiológicos, formado por integrantes da pasta, da Anvisa e do Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde, ligado à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), para investigar e monitorar os efeitos adversos dos imunizantes.

O monitoramento dos casos adversos têm sido feito pelo sistema VigiMed, disponibilizado pela Anvisa, e que já é usado no Brasil desde o final de 2018. Ele pode ser acessado tanto por cidadãos quanto por profissionais de saúde.


Como é feita a investigação

Segundo o “Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação”, atualizado em 2020, os eventos adversos graves, que precisam de hospitalização ou geram risco de morte ou a morte em si, devem ser notificados e inseridos no sistema em até 24h (ou informado por telefone, e-mail e até mesmo WhatsApp). Obrigatoriamente, todos os casos graves são investigados e a análise dos dados é feita em até 48 horas após a notificação do caso suspeito.

Para a investigação, profissionais são consultados e discutem os casos a partir da análise de prontuários médicos, laudos de exames laboratoriais e de imagem, relatórios de evolução e declaração de óbito.

Segundo o documento, o “fato de uma vacina ter sido administrada dentro do período da ocorrência de um evento tampouco sugere, automaticamente, que a vacina tenha causado o evento ou contribuído para a sua ocorrência”. O manual lembra ser importante considerar todas as explicações possíveis para o evento (como problemas na qualidade do produto, erro na imunização, reação de ansiedade associada à imunização ou apenas uma coincidência) e o grau de probabilidade de cada um antes de atribuir relação com a vacina.

Apesar de as análises chegarem a uma conclusão, o manual deixa claro que a avaliação de causalidade “não provará ou refutará uma associação entre um evento e a imunização”. “A função é justamente ajudar a determinar o nível de certeza de uma associação”, diz. Ou seja, o resultado vai tratar apenas da probabilidade de uma doença ou morte ter sido causada pela vacinação.


O que dizem os números

Ao Nexo, o médico Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Imunizações e membro do comitê técnico assessor do PNI, diz que o número de casos suspeitos de eventos adversos causados pela vacinação tende, no momento, a ser muito alto porque o país está imunizando praticamente toda a sua população contra a covid-19.

“Qualquer um que tenha uma doença qualquer, descobriu um câncer, teve um infarto ou um AVC (acidente vascular cerebral), vai ter provavelmente acabado de tomar a vacina e haverá uma associação temporal [entre a aplicação da vacina e a doença] porque a população brasileira inteira praticamente está recebendo duas doses”, afirmou.

Essa associação aconteceu na quarta-feira (19), por exemplo, em Lençóis Paulista, no interior de São Paulo. A prefeitura suspendeu a campanha de imunização na cidade após o relato de que uma criança de dez anos com asma teria apresentado alterações nos batimentos cardíacos, chegando a desmaiar 12 horas após a aplicação da vacina, segundo seus pais.

Em nota, a Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo afirmou que era “precipitado e irresponsável afirmar que o caso do município está associado à vacinação”. “Na maioria das vezes, os casos de eventos adversos pós-vacinação são coincidentes, sem qualquer relação causal com o imunizante”, disse a pasta.

Na quinta-feira (20), depois da análise de um grupo de trabalho da vigilância estadual, especialistas que revisaram o caso apontaram que a criança tinha, na verdade, uma síndrome de Wolff-Parkinson-White, condição congênita que leva a crises de taquicardia. A doença era, até então, desconhecida da família. “Não existe relação causal entre a vacinação e o quadro clínico apresentado. Portanto, o evento adverso pós-vacinação está descartado”, disse o governo.

Essa associação de doenças com as vacinas em meio a uma campanha de imunização em massa no país são, segundo Kfouri, justamente os 4.000 casos citados por Marcelo Queiroga. Ao ser questionado pela imprensa sobre a divulgação do dado, o ministro assumiu ter se equivocado e reconheceu que o número se referia a casos notificados em investigações.

Segundo Kfouri, nas análises das mortes ocorridas dias após a vacinação, são excluídas as condições crônicas e as reações alérgicas, por exemplo, e tenta-se juntar as evidências de causalidade. “Algumas causas desses fenômenos são conhecidas, como trombose e miocardite [inflamação do músculo cardíaco], até que se chegue a um nível de evidência muito provável de ser relacionado às vacinas”, disse.

Em relação aos 14 casos apontados pelo sistema da Anvisa, foi isso o que aconteceu, segundo o médico: houve uma associação entre as mortes e a aplicação dos imunizantes. Muitos casos, segundo ele, ocorreram por trombose ou choque anafilático, e as evidências apontam a vacina como um fator para ter desencadeado a reação.

“Certeza absoluta de nada a gente tem na vida, mas as evidências apontam para isso. São quase 400 milhões de doses [aplicadas no Brasil], apenas 14 óbitos, isso dá zero vírgula zero, zero, zero qualquer coisa”, disse, ao ressaltar que o número de mortes em relação ao total de vacinados é muito baixo.


Os benefícios superam os riscos

Professora de farmacologia da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenadora do centro de estudos Sou_Ciência, Soraya Smaili lembra ao Nexo que a manutenção da vacinação, apesar do risco de efeitos adversos, ocorre após uma análise do risco-benefício.

“Numa população como a brasileira, com mais de 200 milhões de pessoas, você tem que pesar qual o benefício que vamos ter com a vacinação contra a covid-19 e o risco de ocorrer uma doença, como uma miocardite. O risco é muito menor de ocorrer a miocardite com a vacina do que com a covid, que é uma doença devastadora”, disse.

A professora lembra que o nível de segurança das vacinas é alto porque elas já foram testadas inicialmente em laboratório, depois em animais, e por fim passaram por três fases de ensaios clínicos em humanos, até serem aprovadas — o que só ocorre com a comprovação de segurança.

“Durante a fase de aplicação, é o que a gente chama de fase quatro — ou fase de vigilância. Durante essa fase, você pode começar a detectar na população um caso adverso em um milhão de pessoas, ou um caso em 100 mil pessoas. Isso tem que ser muito bem descrito e registrado e tem que constar na bula da vacina”, disse.

No caso das vacinas usadas no Brasil, por causa do trabalho de vigilância que vem sendo feito, a Anvisa já determinou a inclusão de “possível risco de Síndrome de Guillain-Barré” (doença autoimune) nas bulas da Coronavac, AstraZeneca e Janssen. Miocardite e a pericardite (inflamação do tecido que envolve o coração) constam na seção de advertências e precauções da Pfizer. Já “possíveis ocorrências tromboembólicas” foram incluídas nas bulas da AstraZeneca e Janssen.

Segundo o “Manual de Vigilância Epidemiológica de Eventos Adversos Pós-Vacinação”, embora nenhuma vacina esteja totalmente livre de provocar eventos adversos, “os riscos de complicações graves causadas pelas vacinas são muito menores do que os das doenças contra as quais elas conferem proteção”.

“É preciso, ainda, grande cuidado ao contraindicar as vacinações em virtude da possibilidade da ocorrência de eventos adversos, pois as pessoas não imunizadas estão sujeitas a adoecer e, além disso, representam um risco para a comunidade, pois poderão ser um elo na cadeia de transmissão”, diz o documento.

O documento ressalta ainda que o desenvolvimento das vacinas mostrou-se uma das “mais bem-sucedidas e rentáveis medidas de saúde pública, no sentido de prevenir doenças e salvar vidas”. “Desde a última metade do século 20, doenças que antes eram muito comuns tornaram-se raras no mundo desenvolvido, devido principalmente à imunização generalizada. Centenas de milhões de vidas foram salvas e bilhões de dólares poupados em saúde pública”, diz.


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