
Publicado em 03/03/2022 - 07:52 / Clipado em 03/03/2022 - 07:52
Heptacampeã brasileira depende de rifas para treinar
Mariana Marcelino Imagem: Wagner do Carmo/CBAt
Demétrio Vecchioli
Mariana Marcelino ficou a duas vagas de disputar os Jogos Olímpicos de Tóquio. Se houvesse 34, e não 32 credenciais destinadas às atletas do lançamento do martelo, ela teria sido a primeira brasileira nesta prova em uma Olimpíada, como já foi pioneira no Pan. Heptacampeã brasileira e tricampeã sul-americana, ela, porém, depende do dinheiro arrecadado em rifas para pagar as contas e continuar treinando em condições precárias.
Não que esse seja um cenário inédito no esporte brasileiro, longe disso. Todos os dias, nas mais diversas modalidades, atletas apelam à solidariedade de outras pessoas para seguirem em busca dos sonhos esportivos. O caso de Mariana, porém, expõe a crise financeira pela qual passa o atletismo do Brasil. Nem uma atleta que é a melhor do continente em sua prova, melhor da história do país, consegue sobreviver no esporte de forma tranquila. O que pode ser dito de quem não tem um currículo tão laureado?
"Estou no esporte por amor. É cansativo fisicamente e emocionalmente a gente doa uma vida. Eu saí de casa com 17 anos em busca de um sonho, atingi meus sonhos, mas não estou tendo retorno, valorização. Eu sinto dor todo dia, suo, sangro, consigo bons resultados, estou fazendo história na minha prova, sou referência na América do Sul, mas não estou tendo suporte básico para conseguir ir muito mais longe", desabafa.
Nascida em Joinville (SC), Mariana veio para São Paulo aos 17 anos tentar a sorte em uma prova na qual o Brasil não tinha nenhuma tradição: o lançamento do martelo. Repetidamente campeã nacional, defendeu a antiga BM&F (depois B3) e a Orcampi, de Campinas. Quando a velha equipe de São Caetano do Sul fechou as portas, no fim de 2018, Mariana herdou parte dos equipamentos para treinamento na sua prova, mas não teve o que comemorar.
Sem a B3, restou uma única grande equipe no atletismo: o Pinheiros, que, sem concorrência, não se vê provocado a investir. Pelo contrário, pode reduzir equipe e continuar, com folgas, vencendo o Troféu Brasil. Quem não tem espaço no clube de elite paulistana muitas vezes sobrevivia com contratos com prefeituras do interior de São Paulo, que formavam time para disputar os Jogos Abertos. Mas uma mudança nas regras não exige mais um vínculo longo entre cidade e atleta.
"Antes você tinha que contratar um atleta o ano inteiro. Agora não precisa ser o ano inteiro. Para nós atletas, foi péssimo. Acaba não tendo vínculo, o clube não tem essa obrigação. Só que a gente precisa sobreviver o ano inteiro", explica Mariana, que no ano passado defendeu a cidade de São Caetano, a partir do Instituto Elisângela Mariano (IEMA), que nasceu como projeto de formação de atletas para a BM&F.
Hoje, toda a renda da heptacampeã brasileira é o Bolsa Atleta, na categoria internacional, de R$ 1.850 que ela recebe do governo federal por ter sido campeã sul-americana em 2019. O benefício deveria dar conforto a atletas com nível para subir ao pódio pelo Brasil em eventos internacionais, mas, sem reajuste desde 2010, perdeu mais de metade do seu valor de compra. Se tivesse sido reajustado pela inflação neste período, hoje estaria em mais de R$ 4,4 mil.
Mas não foi, e Mariana precisa, com R$ 1,8 mil ao mês, pagar as despesas comuns a uma mulher de 29 anos, independente, e todos os altos custos de treinamento. Ela até tem à disposição o CT da Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt) em Bragança Paulista, no interior de São Paulo, onde recebe também atendimento médico e de fisioterapia, mas para morar na cidade precisa pagar aluguel. O restante da bolsa é usado em transporte até o CT, duas vezes por dia, e alimentação.
Não sobra nada para investir em preparação esportiva. "Como tenho volume de treino muito grande, uma cosia que preciso é suplementação. Se for comprar tudo que preciso, fica inviável, seria mais de R$ 500 por mês", calcula. Ela tem acompanhamento com nutricionista, médicos e psicóloga, mas tem de pagar por sapatilhas que precisam ser trocadas mensalmente e custam ao menos R$ 600, luvas de quase R$ 200, que duram três meses, e substituição mensal de manoplas e cabos dos martelos usados em treinamento.
Sem condições apropriadas de treinamento, um atleta entra em um ciclo vicioso. Não treina direito, não tem resultado, passa a receber ainda menos apoio, o treino fica ainda pior... "Fiquei a duas vagas da Olimpíada porque tive um ciclo competitivo muito curto. Quando comecei a ter resultado tinha duas ou três competições para tentar a vaga olímpica. Para ir ao Mundial esse ano, preciso competir no exterior, mas a gente se sente atrasada. Deveria estar pensando em ir para a Europa, mas preciso me preocupar se vou pagar aluguel, se vou trocar minha sapatilha que tá abrindo".
No mês passado, Mariana rifou uma capa de chuva e uma camisa de passeio do uniforme do Brasil. Vendeu 100 números a R$ 10 e faturou R$ 1.000. "Com o dinheiro, comi e coloquei gasolina no carro para ir treinar", admite. Um médico da cidade de São José (SC), pela qual ela já competiu, se solidarizou e ofereceu uma parte de sapatilhas. Outras rifas serão abertas, mas não devem influir no treino. "Possivelmente não vou nem conseguir investir na viagem ou material, mas para as contas básicas".
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Seção: Esporte