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Publicado em 11/11/2023 - 08:21 / Clipado em 11/11/2023 - 08:21

Uma cidade refém do Bolsa Família


Artur Piva

 

Em Mairi, no interior da Bahia, ter um emprego com carteira assinada é privilégio de poucos. Bem poucos. Com 18 mil moradores, menos de mil deles (5%) têm um emprego — seja formal, seja na informalidade. Desses, quase 600 trabalham na prefeitura. Como resultado, o salário da esmagadora maioria é extremamente baixo.

Essa mistura de desemprego, remuneração ínfima e falta de perspectiva empurra a maior parte da população para a dependência de programas sociais, especialmente o Bolsa Família. Atualmente, 4,5 mil famílias dependem da ajuda federal em Mairi. Pelas estimativas do governo, 10 mil moradores (56% dos habitantes) precisam do auxílio.

A situação é bem diferente de cidades como Luís Eduardo Magalhães, também na Bahia, onde 30% da população têm emprego. Em Mucugê, na Chapada Diamantina, a taxa é 27%. No município de Petrolina — um dos grandes produtores de fruta do Brasil — 19% da população está ocupada.

No Estado de São Paulo, esse índice cresce consideravelmente. Em São Caetano do Sul, por exemplo, quase 75% dos moradores têm uma ocupação remunerada. No município paulista, apenas 4% da população precisa do Bolsa Família. O PIB per capita é de R$ 86 mil por ano. A prefeitura responde por menos de 3% da mão de obra empregada no município. O grande motor da economia é o setor privado.

Em Mairi, boa parte de quem recebe o Bolsa Família complementa a renda por meio de bicos e trabalhos informais. Na prática, a porta de saída dessa situação é só uma: a rodovia BR-407 — que leva a cidades com mais oportunidades. Resta muito pouco para quem fica.
Mairi é um município do Estado da Bahia, na Região Nordeste do Brasil | Foto: Wikimedia Commons
 

Mães do Bolsa Família

Kayllany Nascimento de Sousa, de 20 anos, mora com a filha, Helena, de 2. Ela recebe o benefício e faz bicos como designer de sobrancelhas. Juntando as duas rendas, consegue ganhar próximo a um salário mínimo por mês (pouco mais de R$ 1,3 mil).

“É difícil ser mãe em Mairi, aqui não tem emprego”, desabafa Kayllany. Ela relata que o dinheiro recebido do governo é fundamental para fechar as contas e impulsionar a clientela. A freguesia aumenta justamente no período de pagamento do benefício — que vai do dia 18 ao fim de cada mês.
Kayllany Nascimento de Sousa, de 20 anos | Foto: Artur Piva/Revista Oeste

O auxílio, porém, criou uma armadilha para ela dentro de casa. Com 25 anos, Bruno, pai de Helena, decidiu se dedicar apenas ao futebol. Em vez de procurar um emprego fixo, prefere jogar nos pequenos times da região. Para se sustentar, ele também depende do Bolsa Família. A situação acabou com a relação do casal, que hoje vive separado.

Antes de Helena nascer, Kayllany sonhava estudar enfermagem. Agora ela se sente incapaz de sair da cidade para cursar uma faculdade.

É bastante comum encontrar em Mairi mulheres que se tornaram mães ainda na adolescência. Carolaine Conceição está entre elas. Com 24 anos, ela tem dois filhos: um menino de 7 anos e uma menina de 6.

Carolaine também recebe o Bolsa Família e continua em Mairi por receio de não ter como se manter em outros lugares. Para complementar a renda, faz faxina — que lhe rende cerca de R$ 120 por semana, quando trabalha todos os dias. A mulher mora numa casa com a tia, a mãe, o irmão e os filhos. O pai das crianças foi para Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, em busca de uma vida melhor.
Carolaine também recebe o Bolsa Família e continua em Mairi por receio de não ter como se manter em outros lugares | Foto: Artur Piva/Revista Oeste

Na família de Sirlene Silva Coelho, de 54 anos, vizinha de Carolaine, a gravidez na adolescência se tornou quase hereditária. Ela engravidou pela primeira vez aos 15 anos. O mesmo aconteceu com a filha e a neta.
Sirlene Silva Coelho, de 54 anos | Foto: Artur Piva/Revista Oeste


A pobre economia de Mairi

Em média, o governo federal gastou por volta de R$ 3 milhões por mês com os pagamentos do Bolsa Família no município. Mensalmente, cada família beneficiada recebeu quase R$ 1.000.

No município, existem mais motocicletas que pessoas trabalhando, de acordo com os dados oficiais

No período de pagamento, o movimento na Praça Coronel Alexandre Moreira fica mais intenso. O endereço abriga a única lotérica, onde as filas se tornam constantes nesse período.

A ajuda federal movimenta a economia da cidade. A partir do dia 18 de cada mês, o comércio local ganha mais clientes, e a vida noturna — concentrada nas imediações da mesma praça e restrita a meia dúzia de botecos — recebe um sopro de animação.

As ruas, que como no restante da cidade são pavimentadas com paralelepípedos, ficam repletas de motocicletas de baixa cilindrada, como a Honda CG. Trata-se do principal meio de transporte em Mairi. No município, existem mais motos que pessoas trabalhando, de acordo com os dados oficiais.

Para os jovens, a diversão nessas noites é passear com esses veículos — sempre sem capacete — antes de parar em uma das escassas lanchonetes das imediações. Passados poucos dias do período de pagamento do Bolsa Família, contudo, o silêncio volta a pairar sobre o lugar. E o dinheiro dos bicos permite que os beneficiários sobrevivam até o próximo dia 18.

Como em boa parte das cidades brasileiras, a pobre economia de Mairi se sustenta no tripé assistencialismo, trabalho eventual e empregos públicos. Ter um salário pago pelos cofres do município, entretanto, depende muitas vezes da proximidade com o governo local —mesmo para os cargos de menor remuneração.

Eleitores empregados

Danilo Rios, de 23 anos, confessa que só tem um emprego na prefeitura porque apoiou o atual prefeito, José Bonifácio Pereira da Silva (PT), na última eleição. “Consegui por ter balançado a bandeira dele durante a campanha”, afirma. “Mairi não tem oportunidades e, se apoiar o político errado, fica sem emprego por quatro anos. Conheço muita gente nessa situação.”

Dos quase 600 postos de trabalho diretos na prefeitura, por volta de 40% são nomeados pelo prefeito, entre secretários, comissionados e cargos temporários. A folha de pagamentos da prefeitura do município vai custar R$ 23 milhões em 2023 — valor que não poderia ser pago sem as transferências de verbas dos governos estadual e federal.

A receita dos cofres municipais para este ano é estimada em R$ 75 milhões. Desse montante, R$ 70 milhões vêm dessas transferências. Sem elas o Executivo municipal ficaria completamente paralisado.

As remunerações mais altas pagas pelos cofres municipais correspondem aos salários do prefeito (R$ 18 mil), do vice (R$ 9 mil) e dos nove secretários (R$ 6,5 mil cada). O valor destinado a Danilo Rios, que é professor de dança para idosos, é de R$ 660 mensais. Técnico de enfermagem por formação, ele pretende ir embora para conseguir um trabalho na área.

Falta d’água

Não é somente a falta de empregos que está empurrando Rios para fora de Mairi. A falta de água é outra coisa que o preocupa. O problema é tão recorrente que cisternas e outros reservatórios são itens comuns nas residências de todas as classes sociais.

O abastecimento do município é responsabilidade da Empresa Baiana de Águas e Saneamento S.A., companhia controlada pelo governo estadual. A distribuição na cidade é realizada por gravidade e não é feita diariamente para todos os bairros.

Em geral, os bairros recebem água a cada três dias — daí a necessidade de manter os reservatórios. Porém, algumas vezes, o serviço pode ficar comprometido em razão das constantes manutenções — que recentemente causaram o corte do abastecimento por dez dias em alguns pontos da cidade.

A seca é ainda pior nos povoados da zona rural do município. Em São Bento das Lajes, por exemplo, a estrutura para a distribuição de água encanada existe, mas o serviço simplesmente não funciona. Contraditoriamente, a coleta de esgoto flui normalmente.

O casal de aposentados Neusa dos Santos Bastos, de 65 anos, e Francisco Pereira da Silva, de 74 anos, precisa se virar com os 1.000 litros de água que recebe a cada oito dias de um caminhão-pipa da prefeitura. Essa quantidade é usada para lavar roupas, cozinhar, tomar banho e beber. Caso não baste, resta “bater lata” (ir buscar água a pé) ou comprar de alguém. Todos os moradores do lugar vivem essa realidade.
Casal de aposentados Francisco Pereira da Silva, de 74 anos, e Neusa dos Santos Bastos, de 65 anos | Foto: Artur Piva/Revista Oeste
Tão perto, mas tão distante…

A solução para o problema, porém, não está longe. Nas proximidades há uma represa construída com dinheiro de doações dentro da fazenda de Aliomar Muritiba, ex-vice-prefeito. O encanamento ligando as casas à instalação existe, mas a bomba, de responsabilidade do município, está quebrada há quase uma década.

No povoado, o descaso do poder público vai muito além da água. São Bento das Lajes está a cerca de 30 quilômetros da sede do município — e não existe transporte público entre os dois lugares. Para se deslocar, as opções são animais, motocicletas, carros particulares e o pau de arara — veículo com caçamba improvisada e inseguro para o transporte coletivo.

De acordo com os moradores, quando alguém precisa de atendimento médico, é preciso ir até a cidade de carro. Quem não tem um veículo próprio acaba tendo que pagar pelo serviço — o que pode custar cerca de R$ 200.


Ausência do poder público

Tadeu Matos Pacheco, de 45 anos, mora na zona rural e é vereador em Mairi pelo PSD. Ele está no cargo desde 2013 e confirma a péssima situação do município.

“O poder público começa a agir apenas quando o problema se agrava”, diz. “Não tem planejamento. A gente fica desesperado.”

Na opinião do vereador, a situação de Mairi leva ao aumento da dependência dos programas sociais: “Infelizmente, os filhos dos que dependem do Bolsa Família terão grande risco de seguir dependentes do mesmo programa”.
Tadeu Matos Pacheco, de 45 anos | Foto: Artur Piva/Revista Oeste

Segundo o economista Maurício F. Bento, associado ao Instituto de Formação de Líderes de São Paulo (IFL-SP), esses benefícios muitas vezes acabam se tornando “armadilhas de pobreza”. No caso do Bolsa Família, o motivo está no perigo de perder o benefício.

“Se uma mãe beneficiária do Bolsa Família conseguir um emprego formal, pode perder o direito de receber o benefício”, afirma Bento. “Mas, se ela aceita um emprego informal como empregada doméstica ou se abre uma venda de lanches, por exemplo, ganha uma renda extra e continua recebendo o benefício social.” De acordo com o economista, é preciso existir uma “regra de transição, de modo que a mera aquisição de renda formal não faça a família perder o benefício social”.

Em 2009, o ex-governador de Pernambuco Jarbas Vasconcelos classificou o Bolsa Família como “o maior programa oficial de compra de votos do mundo”. “O marketing e o assistencialismo de Lula conseguem mexer com o País inteiro”, afirmou. “Imagine isso no Nordeste, que é a região mais pobre. Imagine em Pernambuco, que é a terra dele. Ele fez essa opção clara pelo assistencialismo para milhões de famílias, o que é uma chave para a popularidade em um país pobre. O Bolsa Família é o maior programa oficial de compra de votos do mundo”. Quase 15 anos depois, a frase continua mais atual do que nunca.

 

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Seção: São Caetano