Publicado em 28/11/2025 - 10:36 / Clipado em 01/12/2025 - 10:36
Medicina inteligente para todos
O maior desafio da medicina do futuro é garantir acesso com equidade
Por Giovanni Cerri
No último dia 11 de novembro, especialistas, parlamentares e representantes do setor de saúde estivemos reunidos, no auditório do Senado Federal, para discutir os rumos da saúde em face dos avanços tecnológicos que temos experimentado. Sob o título “O Futuro da Medicina e a Medicina do Futuro”, o simpósio nos propôs uma provocação: a inovação pode revolucionar a medicina, mas é preciso que seja distribuída com equidade, ou seja, que não esteja circunscrita aos grandes centros urbanos, mas alcance as comunidades ribeirinhas, as aldeias indígenas, os postos de saúde da periferia, os hospitais do interior, enfim, que atenda à realidade diversa do nosso país. Esse parece ser o maior desafio.
A medicina contemporânea, sem dúvida, vive uma transição estrutural, que é impulsionada pelo avanço das tecnologias digitais, pela crescente capacidade de análise de dados e pela evolução dos modelos organizacionais. A tecnologia, no entanto, não transforma, por si só, os sistemas de saúde. A verdadeira revolução ocorre quando essas ferramentas são integradas ao modelo assistencial, promovendo a continuidade do cuidado, a coordenação entre equipes e a qualidade do atendimento.
O Brasil ocupa uma posição estratégica nesse cenário, pois o SUS, com sua capilaridade e vocação universalista, oferece uma base sólida para a implementação de inovações em larga escala. Ao mesmo tempo, porém, o país carrega desafios estruturais: a heterogeneidade territorial, as disparidades regionais e a desigualdade no acesso ao cuidado. Isso exige modelos flexíveis, escaláveis e sensíveis às realidades locais. E, acima de tudo, exige conectividade.
Sem conexão estável na atenção primária, funcionalidades essenciais como telessaúde, monitoramento remoto e interoperabilidade em tempo real não se viabilizam. Nesse caso, a abordagem tem de ser técnica e pragmática: uso de fibra óptica onde houver infraestrutura instalada, de redes móveis públicas e privadas em áreas com cobertura, de soluções OpenRAN em regiões de baixa densidade e de satélites de órbita baixa para alcançar comunidades remotas. A conectividade é um requisito para a equidade.
A digitalização da saúde, que começou com a automação de processos e a documentação clínica, agora precisa avançar para a construção de ambientes de cuidado conectados. Isso significa acompanhar populações continuamente, estratificar riscos, integrar equipes multiprofissionais e garantir a troca significativa de informações clínicas. A Dinamarca, a Holanda e o Reino Unido, por exemplo, já tratam a saúde digital como infraestrutura essencial. No Brasil, o Plano Diretor de Saúde Digital do Estado de São Paulo, desenvolvido com apoio do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), mostra que é possível organizar redes regionais com fluxos clínicos bem definidos, critérios claros de encaminhamento e monitoramento sistemático de indicadores.
Para que essa rede funcione, todavia, é preciso que os sistemas conversem entre si, isto é, que haja interoperabilidade entre eles. Na prática, é isso o que permite que um médico do interior acesse os exames feitos na capital, que uma equipe de saúde da família acompanhe a evolução de um paciente crônico atendido por um especialista, que a informação clínica circule com segurança e significado. Isso exige padrões técnicos como FHIR, SNOMED e LOINC, que estruturam os dados, padronizam os conceitos clínicos e unificam a forma de identificar exames e de fazer observações. Mais que uma conexão entre máquinas, a interoperabilidade assegura que os sistemas compartilhem informações com sentido clínico preservado, o que se chama de representação semântica.
Nesse ponto, surgem questões éticas fundamentais. A primeira delas é o consentimento: o paciente precisa saber quem acessa seus dados, com que finalidade e por quanto tempo. O modelo federado OpenCare responde a isso ao manter os dados nas instituições de origem e exigir autorização explícita do paciente para cada acesso, mas a ética vai além da privacidade. É preciso garantir que os dados sejam usados exclusivamente para fins assistenciais, não para segmentações comerciais, exclusões por perfil de risco ou decisões administrativas que prejudiquem o cuidado.
Há também o desafio da representação justa. Os padrões clínicos internacionais podem carregar vieses culturais, invisibilizar condições específicas de populações vulneráveis ou não refletir a diversidade dos contextos brasileiros. A interoperabilidade, portanto, precisa ser construída com sensibilidade social e participação dos profissionais que conhecem a realidade do país.
Outro dilema ético é a responsabilidade compartilhada. Quando múltiplas instituições acessam e atualizam os mesmos dados, a quem cabe responder por eventuais erros ou omissões? A rastreabilidade e a governança clínica são fundamentais para que a tecnologia não dilua a responsabilidade profissional.
E há, por fim, a questão da equidade no acesso à própria interoperabilidade. Serviços com mais recursos tendem a se integrar mais rapidamente, mas as unidades públicas ou aquelas situadas em regiões remotas podem ficar à margem. A ética exige que essa integração seja universal, progressiva e apoiada pelo Estado, sob pena de a tecnologia ampliar as desigualdades em vez de reduzi-las.
A inteligência artificial (IA), por sua vez, surge como um poderoso aliado, mas, é claro, desde que usada com responsabilidade. Para tanto, sua aplicação clínica deve considerar três pilares: validação em contexto real, monitoramento contínuo e responsabilidade médica. A decisão final deve sempre permanecer com o profissional. A IA pode ajudar a regular filas com base em risco clínico, oferecer suporte remoto a regiões com poucos especialistas e reduzir a variabilidade diagnóstica entre serviços, mas não substitui o julgamento clínico.
Outro eixo da transformação é o cuidado domiciliar. Com o avanço da telessaúde e das tecnologias de monitoramento, tornou-se possível o cuidado clínico no domicílio, sobretudo no caso de pacientes com doenças crônicas. Modelos híbridos, que combinam acompanhamento pela atenção primária com suporte remoto de especialistas, permitem detectar riscos e ajustar condutas continuamente. Estudos internacionais mostram que o modelo de hospital-at-home pode substituir internações convencionais com melhores desfechos clínicos. A projeção para os próximos anos é que se redistribua parte do cuidado hospitalar para o domicílio, com a atenção primária coordenando os fluxos e os hospitais especializados concentrando-se nos casos de alta complexidade.
Nada disso, no entanto, será possível sem investir em sólida formação médica. A digitalização só produz valor quando está apoiada em boa clínica, raciocínio diagnóstico e visão integrada do cuidado. As novas Diretrizes Curriculares Nacionais de Medicina, homologadas em 2025, já incorporam competências em análise de dados, inteligência artificial e cuidado digital, mas o essencial ainda é formar médicos com capacidade de síntese, discernimento e responsabilidade clínica. O profissional do futuro é o generalista com base sólida, capaz de compreender o paciente em sua totalidade e de coordenar decisões em rede.
A medicina do futuro, afinal, é a medicina de sempre, sustentada pela relação entre profissional e paciente, mas agora com instrumentos mais potentes para compreender, acompanhar e cuidar. O desafio está lançado: fazer com que essa medicina mais inteligente, mais conectada e mais resolutiva seja também mais justa. Estou certo de que o futuro da medicina que vislumbramos aponta para uma medicina do futuro acessível a todos.
Giovanni Cerri
Giovanni Cerri é professor titular de Radiologia da Faculdade de Medicina da USP; presidente dos Conselhos dos Institutos de Radiologia (InRad) e de Inovação (InovaHC), do Hospital das Clínicas da FMUSP; e membro titular e da diretoria da Academia Nacional de Medicina e da Academia Paulista de Medicina. É responsável pelo Serviço de Diagnóstico por Imagem do Hospital Sírio-Libanês e é também presidente do Instituto Coalizão Saúde (ICOS) e membro do Fórum Nacional de Saúde do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
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