Clipclap

Aguarde ...

Site Medscape

Publicado em 10/11/2025 - 10:30 / Clipado em 10/11/2025 - 10:30

Hospital em casa: o futuro da medicina nos lares brasileiros


Daniela Barros

 

Em vez de um prontuário, a enfermeira carrega um tablet. No visor, a saturação de oxigênio e a frequência cardíaca piscam em tempo real, enviadas por sensores colocados no braço do paciente. Do outro lado da tela, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), uma equipe acompanha tudo de um centro de monitoramento remoto.

Com esses avanços, o atendimento domiciliar pode deixar de ser eventual, tornando-se um hospital conectado. Um projeto-piloto coordenado pelo InovaHC, em parceria com a Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, marca um passo decisivo para o modelo de “hospital em casa”no Brasil. A proposta é integrar teleconsultas, monitoramento contínuo e exames a distância, permitindo que o cuidado siga o paciente, e não o contrário.

“A missão é atuar como agente de transformação, conectando pesquisadores, empreendedores e parceiros para criar soluções de impacto real na saúde brasileira”, explica o Dr. Giovanni Guido Cerri, presidente do InovaHC. “Nosso propósito é transformar conhecimento em inovação aplicada, contribuindo para a qualidade de vida e para a sustentabilidade do sistema.”
IFrame

A tecnologia existe, mas fazer dela rotina é outra história. “Os recursos de saúde digital e o monitoramento remoto ajudam muito, mas a sua adoção em larga escala ainda enfrenta desafios estruturais”, reconhece o Dr. Giovanni.

Entre os obstáculos estão falta de interoperabilidade, dificuldade de capacitação das equipes e infraestrutura desigual. “Temos instrumentos tecnológicos importantes, mas precisamos investir na formação dos profissionais e tratar esse tema como prioridade de Estado”, defende.

A descentralização do diagnóstico 

Em farmácias e postos de saúde pelo país, um pequeno cartucho é inserido em um leitor portátil, e em minutos o resultado do exame aparece na tela. Esses exames no ponto de atendimento, realizados sem necessidade de um laboratório central e com resultados em poucos minutos, já conectam pacientes, médicos e sistemas públicos por plataformas digitais integradas.

 

“Estamos reduzindo a distância entre o sintoma e o diagnóstico”, explica Marcus Figueredo, CEO da startup em saúde Hilab. “Os biossensores e os exames portáteis estão transformando a jornada do paciente, encurtando o tempo entre [o aparecimento dos] sintomas e o tratamento, e trazendo o acompanhamento contínuo para o centro do cuidado.”

A Hilab oferece sensores, algoritmos de inteligência artificial (IA) e conectividade em tempo real para obter resultados integráveis ao prontuário eletrônico. “Nos próximos 10 anos, veremos impactos clínicos concretos dessas tecnologias integradas, construindo uma medicina mais preventiva e conectada”, projeta Marcus.

Mas o avanço técnico exige validação. “O grande desafio agora é garantir que essas ferramentas não apenas melhorem o tratamento, mas também não representem risco ao paciente. Em saúde, inovação exige tempo e rigor científico”, ressalta. Mesmo assim, ele se mantém otimista: “O impacto dessa combinação entre IA e sensores será profundo e positivo”.

A conectividade pode ajudar também na saúde olhos. Na Phelcom Technologies, o retinógrafo portátil Eyer, acoplado a um smartphone e com IA embarcada, já é usado em exames de retina, incluindo rastreamento de retinopatia diabética, ampliando o acesso ao exame em locais com poucos especialistas. “Estamos em uma nova era em que sensores, conectividade e algoritmos são componentes críticos do hospital-at-home”, afirma José Augusto Stuchi, CEO da empresa.

Os dispositivos operam com padrões abertos de interoperabilidade (DICOM e APIs) e aplicam edge computing — tecnologia que processa as imagens no próprio equipamento, sem depender da internet — antes de sincronizá-las com a nuvem em tempo real. “Faltam incentivos à pesquisa e escala local para reduzir custos unitários. Muitos equipamentos ainda são projetados para clínicas e precisam ser adaptados ao uso domiciliar”, observa José Augusto.


Sensores contínuos e o novo olhar da endocrinologia

No consultório, o glicosímetro começa a dar lugar a um painel digital que mostra, em tempo real, glicemia, padrões de sono, atividade física e alimentação.

Para o Dr. Márcio Krakauer, coordenador de Saúde Digital da Sociedade Brasileira de Diabetes (SBD), os sensores já transformaram o dia a dia da endocrinologia. “Os sensores contínuos de glicose e as canetas inteligentes que registram tipo, dose e horário da insulina estão mudando o tratamento. Hoje conseguimos monitorar completamente o paciente, integrando dados que antes eram fragmentados.”

Entre as próximas novidades no cuidado do diabetes está o sensor de cetona. Trata-se de um dispositivo vestível, semelhante a um pequeno adesivo cutâneo, que mede continuamente corpos cetônicos e envia alertas automáticos quando há risco de cetoacidose. Em testes internacionais e com previsão de chegada ao Brasil em breve, ele antecipa descompensações metabólicas antes de surgirem os sintomas.


Robótica flexível e reabilitação inteligente

Em um laboratório da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), um braço robótico feito de silicone se move suavemente, respondendo a toques quase imperceptíveis. É o sistema sensório-motor flexível baseado em solução iônica (SSMS-IS), um protótipo que imita a pele humana.

“Integramos sensores e atuadores em uma estrutura maleável, capaz de detectar e responder a pressões em tempo real”, explica o doutorando Sender Rocha dos Santos, sob orientação do professor Eric Rohmer. “É como dar sensibilidade ao robô e segurança ao paciente.”

Feito de silicone com solução iônica biocompatível de aloe vera e glicerina, o material pode ser aplicado diretamente sobre a pele humana, sem irritação. “A robótica suave permite criar interfaces mais seguras e responsivas para o corpo humano”, diz Sender.

Ainda em fase pré-clínica, o projeto busca baixo custo e escalabilidade industrial. Se for bem-sucedido, poderá integrar órteses de reabilitação domiciliar, devolvendo mobilidade ao paciente e melhorando a autonomia tecnológica no país.
 

O futuro em rede: nanossensores e o cuidado domiciliar

A pesquisa em biossensores e nanossensores tem avançado rapidamente no Brasil. O programa Sensores e Biossensores do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) desenvolve plataformas portáteis para diagnóstico rápido, compatíveis com conectividade móvel e produção escalável. A Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), por sua vez, criou uma plataforma com nanossensores de ouro para diagnóstico de covid-19, reforçando a viabilidade técnica nacional.

“O sistema caminha para um modelo centrado no paciente, e tecnologias como os nanossensores e o hospital-at-home devem acelerar essa mudança”, observa Dr. Giovanni.

O modelo de hospital em casa está ganhando corpo no país. Um estudo com 920 pacientes em hospitalização domiciliar privada mostrou que o modelo brasileiro se alinha ao conceito internacional, embora com adaptações para o contexto local. O Programa Melhor em Casa, modalidade do Ministério da Saúde, também avança na integração entre atenção primária e atendimento domiciliar.

A adoção plena do modelo, contudo, enfrenta barreiras: conectividade desigual, dificuldades na interoperabilidade de dados, falta de modelos de remuneração, capacitação de equipes e estrutura logística de equipamentos biomédicos. 

“Integrar nanossensores e dispositivos inteligentes ao ecossistema exige garantir qualidade, segurança e privacidade, sem perder a escala”, resume Dr. Márcio. Nesse contexto, a interoperabilidade é crucial. Para ele, as sociedades médicas terão papel central na validação clínica e na definição de boas práticas para uso dessas tecnologias. “A tecnologia é o meio. O fim continua sendo o mesmo: cuidar melhor das pessoas.”


Ética, LGPD e confiança: os pilares do hospital digital

Quando os dados viajam da casa do paciente para a nuvem, o elo mais valioso é a confiança. “Os princípios éticos do uso de dados em saúde já estão estabelecidos: privacidade, consentimento informado e segurança da informação”, lembra Marcus. “O Brasil, com a LGPD [Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais], tem um marco robusto e prático para inovação digital. Mais do que criar regras, é essencial garantir que todos os agentes as cumpram.”

Fora do país, a discussão avança para além da tecnologia. Maria Palombini, líder global de saúde e ciências da vida na IEEE Standards Association, defende que a padronização é o primeiro passo para democratizar a inovação. “Padrões globais baseados em consenso reduzem custos e garantem qualidade e segurança. Eles aumentam a confiança de pacientes e profissionais, promovem economias em grande escala e estimulam a adoção em países de média renda, como o Brasil.”

Para ela, padronizar é também um ato ético: “Quando novas tecnologias seguem normas transparentes, evitam obsolescência precoce e reforçam a segurança do paciente.”

A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) tem avançado nesse debate, atualizando normas para softwares de dispositivos médicos e ferramentas de IA. “Estamos todos aprendendo o impacto da IA no diagnóstico e no cuidado. É um processo de construção conjunta”, reconhece Marcus.

À medida que a regulação amadurece e a tecnologia se torna mais invisível, o centro do cuidado volta a ser o mesmo de sempre: a relação humana. O hospital do futuro talvez não tenha paredes, mas continuará onde sempre esteve, ao lado do paciente.

Daniela Barros é jornalista, com especialização em jornalismo social pela PUC-SP e mestranda no Departamento de Medicina Social da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP). Escreve sobre medicina há 23 anos, colaborando com diversas publicações especializadas no tema.

 

https://portugues.medscape.com/viewarticle/hospital-casa-futuro-medicina-nos-lares-brasileiros-2025a1000v09?form=fpf

Veículo: Online -> Site -> Site Medscape