Publicado em 27/10/2025 - 09:44 / Clipado em 27/10/2025 - 09:44
Ele se descobriu um homem trans em meio ao tratamento de câncer de mama
Erick Venceslau recebeu o diagnóstico da doença como uma mulher cis e começou a transicionar durante o tratamento
Por Adriana Moreira
Receber o diagnóstico de um câncer de mama é algo que invariavelmente traz mudanças na vida. O tratamento implica mudar rotinas, lidar com efeitos colaterais e se defrontar com a própria mortalidade. Com Erick Venceslau, de 30 anos, não foi diferente, exceto por uma questão: ele começou o tratamento como uma mulher cis, mas se descobriu um homem trans no meio desse processo.
Erick estava ao lado da esposa quando sentiu o nódulo na mama, em junho do ano passado. “Eu trabalhava com uma pessoa que já tinha passado por um câncer, então aquilo me chamou a atenção”, conta. Ainda assim, quando os resultados dos exames indicaram um carcinoma invasivo, foi um baque. “Eu comecei a chorar. Minha esposa me apoiou durante todo o processo, ela foi fundamental”, diz.
O tratamento de Erick começou com a quimioterapia intravenosa para diminuir o tumor. “Quando senti o nódulo, ele tinha 3 cm. Em setembro, quando começou o tratamento, ele já tinha aumentado mais 4 cm.”
Com o tumor reduzido pela quimioterapia, Erick teria que retirar apenas o quadrante da mama. Mas ele preferiu aproveitar a oportunidade para fazer a mastectomia masculinizadora, retirando ambas as mamas e, a partir daí, dar início ao seu processo de transição. Segundo ele, embora a cirurgia tenha dado um “empurrãozinho”, a ideia de transicionar o perseguia desde a pandemia. “Eu sentia que algo estava faltando”, conta.
Transição hormonal x câncer
Retirar as mamas também o liberou de fazer a radioterapia - uma vantagem adicional, diz ele, que se autodefine como um “baby trans”. “Ainda estou no início do meu processo. Espero conseguir tomar hormônio”, afirma, sobre iniciar a terapia de transição com testosterona. E mostra, com orgulho, o rosto com barba “Mas aqui é minoxidil”, explica, sempre com muito bom-humor.
Por enquanto, Erick segue em tratamento, agora com quimioterapia oral e imunoterapia, até dezembro. “Pedi para ele esperar ele terminar o tratamento antes de qualquer coisa”, explica o Dr. Romualdo Barroso, líder de câncer de mama e oncologista do Hospital Brasília, da Rede Américas, onde Erick faz o tratamento.
O médico, que também é membro da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), diz que ainda não se sabe que tipo de efeitos a testosterona pode causar em um paciente que teve câncer de mama porque não há dados de segurança suficientes.
“É uma questão muito complexa”, afirma. “Eu acho que a nossa maior missão como médico é ajudar os pacientes. Tem o aforismo de Hipócrates, que diz curar quando possível, aliviar quase sempre e consolar sempre. Então eu sempre digo para os meus pacientes que nessa relação médico-paciente, o protagonista é o paciente. Eu sei as evidências científicas do que faz bem e o que faz mal, e óbvio, eu não vou prescrever nada que eu acho que vai fazer mal, mas também não acho que eu tenho que ser um juiz e acabar o meu relacionamento com meu paciente se ele me contrariar ou se ele fizer alguma coisa diferente.”
Dr. Romualdo entende o quanto a questão da aparência física pode ser crucial para algumas pessoas. “Para alguns indivíduos, a questão hormonal e a questão da aparência física é algo muito importante. E eu acredito muito dentro dos dos princípios bioéticos que a autonomia do indivíduo tem de ser respeitada. Ele estando consciente, orientado de riscos e benefícios, claro.”
Sendo assim, o médico combinou com Erick para aguardar o fim do tratamento para depois procurar um endócrino que seja especializado e possa orientá-lo nessa questão.
Acolhimento e saúde
O oncologista conta que nunca tinha atendido um paciente trans, mas havia participado recentemente de um workshop de letramento sobre diversidade quando conheceu Erick.
“Depois da cirurgia, disse a ele: ‘Me desculpe, eu nunca perguntei como você gostaria de ser chamado’. E ele pediu que a partir de então a equipe passasse a chamá-lo de Erick”, lembra. “Isso teve um significado enorme de dignidade pra ele. E a gente ficou muito feliz também de poder proporcionar isso pra ele. É uma coisa simples, mas que para a pessoa representa muito na questão humana.”
Segundo o médico, a importância desse tipo de acolhimento reflete diretamente na saúde de pessoas que historicamente são negligenciadas pelo sistema. “Elas não se sentem seguras para adentrar no sistema de saúde para procurar ajuda médica, até pela ignorância e falta de informação dos próprios profissionais. E a gente sabe que câncer, de uma maneira geral, quanto mais precoce é feito o diagnóstico, maior é a chance de cura, menos agressivo o tratamento. E se você tem uma desconfiança, se não acredita que o sistema vai te acolher bem, você vai postergar o cuidado da saúde.”
Erick tem vários planos para depois de terminar o tratamento. Ele sonha em ter filhos com a esposa e voltar à sua cidade-natal, Maceió, onde vive sua família. “Sou muito grato por ter uma rede de apoio”, diz. Mas ele também quer ser uma voz para orientar outras pessoas em situação semelhante. “Quero levar minha experiência a outras pessoas.”
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