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 Site Futuro da Saúde

Publicado em 09/09/2025 - 10:43 / Clipado em 10/09/2025 - 10:43

A inteligência artificial no enfrentamento da judicialização da saúde


Em novo artigo, Giovanni Cerri escreve sobre uma nova iniciativa do InovaHC, que usa inteligência artificial para agilizar demandas judiciais na saúde

 
Por Giovanni Cerri
 

Costumo lembrar que a pandemia, mesmo tendo sido uma grande tragédia sanitária, fez com que o uso da tecnologia na área da saúde fosse acelerado. A emergência rompeu a resistência que não deixava a inovação deslanchar e, desde então, o processo de transformação digital vem avançando a passos largos, sobretudo com o uso da inteligência artificial. O leque de possibilidades de emprego de sistemas inteligentes na saúde, no entanto, vai além das inovações propriamente médicas. Prova disso é o novo projeto do InovaHC, que, reunindo tecnologia, ciência médica e legislação, pode ajudar a enfrentar o grave aumento da judicialização da saúde no Brasil.

Todos temos acompanhado no noticiário casos de pacientes que ajuízam ações para obter tratamentos, cirurgias ou medicamentos de alto custo ou para solucionar uma infinidade de outras demandas, como reajustes supostamente abusivos de planos de saúde, reembolso de despesas, cancelamento injustificado de contrato ou negativa de cobertura de algum procedimento ou exame. Sejam quais forem os motivos, o fato é que estamos falando de mais de 500 mil novas ações por ano desde 2022, de mais de 670 mil no ano passado e de uma estimativa de fechar 2025 com 800 mil queixas novas.

Não é difícil perceber que essa situação produz impactos profundos tanto no Sistema Único de Saúde (SUS) quanto na saúde suplementar. Um exemplo nos ajuda a entender as dimensões do problema: um medicamento de dose única para tratar a síndrome de Duchenne, doença rara que afeta aproximadamente um em cada 3.500 meninos nascidos vivos, pode custar R$ 20 milhões. Tratamentos para doenças raras, além de serem muito caros, são pouco testados, o que se explica exatamente por atenderem um número reduzido de pacientes. Isso pode levar a uma situação em que um gasto considerável não represente uma resposta eficaz para determinado indivíduo e, ao mesmo tempo, impacte a capacidade financeira do sistema de atender outros pacientes com outras demandas.

É claro que é legítima a busca de atenção aos direitos individuais, pois nenhuma vida pode ser negligenciada, mas o juiz, ao analisar o caso concreto, não pode desconsiderar a lógica da equidade coletiva. Na prática, priorizar demandas individuais sem levar em conta o conjunto dos pacientes que dependem do serviço de saúde pode desorganizar o planejamento assistencial e afetar a sustentabilidade do sistema como um todo.

Uma iniciativa que vem ajudando os juízes a tomar decisões informadas, baseadas em evidências científicas, é o NatJus (Núcleo de Apoio Técnico do Judiciário), que é uma estrutura criada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para oferecer suporte técnico-científico aos magistrados em decisões relacionadas à saúde (pública e suplementar). Os núcleos, organizados dentro dos tribunais ou em parceria com instituições de saúde e universidades, são compostos de médicos, farmacêuticos, enfermeiros, sanitaristas e especialistas em políticas públicas, que elaboram pareceres técnicos para fundamentar as decisões judiciais. Esses pareceres ficam armazenados na plataforma e-NatJus para consultas posteriores.

Mesmo assim, os problemas não se resolvem. Diante do volume crescente de ações, é impossível distinguir, por exemplo, os casos mais graves, que precisariam ser julgados com urgência sob pena de se perderem vidas ou chances de cura. Por outro lado, dada a quantidade de tribunais em todo o país, casos semelhantes podem ser julgados segundo entendimentos diversos, resultando em desigualdade e sentimento de injustiça. Imaginamos, então, um meio de ajudar o Judiciário a lidar com essa enorme demanda, que é também extremamente complexa em sua multiplicidade de fatores tanto médico-científicos como sociais e familiares.

Foi assim que o InovaHC articulou uma parceria entre a Amazon Web Services (AWS), o Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) e o Hospital das Clínicas (HCFM-USP) para o desenvolvimento de um Modelo de Linguagem Especializado (SLM), baseado em inteligência artificial generativa. Fornecemos à equipe técnica acesso a uma vasta base de dados médicos e jurídicos, com mais de 200 mil documentos e cerca de 5.000 consultas mensais, que alimentaram o treinamento do modelo para torná-lo capaz de otimizar a triagem de processos judiciais relacionados à saúde, acelerando a análise técnica e jurídica das petições.

Aproveitando ao máximo o alto volume de informação disponível, a ferramenta classifica automaticamente os casos conforme categorias do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), resume petições e decisões com base em evidências clínicas e jurídicas e pode até responder a perguntas dos magistrados em linguagem natural. O projeto utiliza dados anonimizados de pacientes, respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).

Nossa expectativa é que o SLM reduza drasticamente o tempo de resposta dos Núcleos de Apoio Técnico do Judiciário, que hoje pode levar até 20 dias em algumas jurisdições. Com a triagem automatizada de até 80% dos casos, o modelo dará agilidade às decisões judiciais, garantindo que sejam fundamentadas e estejam em consonância com a medicina baseada em evidências.

Mais do que uma inovação tecnológica, o SLM representa uma tentativa concreta de reequilibrar o sistema de saúde brasileiro, promovendo justiça com responsabilidade fiscal. Ao apoiar magistrados com informações qualificadas e contextualizadas, a ferramenta contribui para decisões mais justas, do ponto de vista da coletividade, e sustentáveis.

Como sistemas inteligentes evoluem rapidamente, podemos imaginar que, no futuro, o Modelo de Linguagem Especializado (SLM) poderia ser expandido para rastrear todas as ações judiciais que envolvessem pedidos de determinado medicamento de alto custo, permitindo a identificação de padrões de demanda por região, perfil clínico e frequência de prescrição. Com esses dados estruturados, seria possível subsidiar negociações com fabricantes para redução de preços, apoiar decisões de incorporação ao SUS e orientar políticas públicas mais equitativas e sustentáveis, transformando o SLM em uma ferramenta estratégica de inteligência em saúde. Não é difícil antever que a tecnologia poderá melhorar – e muito – os sistemas de saúde, trazendo racionalidade às decisões em todos os níveis

 

https://futurodasaude.com.br/judicializacao-da-saude-inteligencia-artificial-artigo/

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