Publicado em 29/08/2025 - 10:35 / Clipado em 01/09/2025 - 10:35
Uma cidade chamada Hospital das Clínicas
Maior complexo hospitalar da América Latina, o HC é responsável por 35% de todos os atendimentos de alta complexidade da cidade de São Paulo, 15% do Estado e 5% do Brasil
Branca Nunes
Os moradores de São Paulo sabem que não faltam na cidade instituições de saúde reconhecidas pela excelência. Mas são incontáveis os que avisam aos parentes e amigos que, se ocorrer qualquer acidente grave, querem ser levados ao Hospital das Clínicas (HC). Pode parecer brincadeira, mas é um pedido sensato — e que tem embasamento científico.
Segundo o protocolo do HC, as condutas iniciais de um paciente vítima de trauma devem ser definidas em até 28 minutos. Para agilizar o processo, um aparelho de tomografia foi instalado dentro do centro cirúrgico para que não se perca tempo com o deslocamento do doente por diferentes salas. Cada profissional presente fica responsável por investigar uma parte do corpo do acidentado. O método é tão eficaz que médicos do mundo inteiro vêm ao Brasil para estudá-lo.
“A velocidade é crucial”, explica Edivaldo Massazo Utiyama, diretor clínico do HC e professor de Cirurgia Geral e Trauma do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP). “A cada três minutos, aumenta em 1% a taxa de mortalidade de um paciente que sofreu um acidente grave”.
Maior complexo hospitalar da América Latina, o HC é formado por nove institutos: Instituto Central (ICHC), Prédio dos Ambulatórios (PAMB), Instituto de Ortopedia e Traumatologia (IOT), Instituto de Psiquiatria (IPq), Instituto da Criança (ICr), Instituto do Câncer de São Paulo (Icesp), Instituto do Coração (InCor), Instituto de Radiologia (InRad) e Instituto de Medicina Física e Reabilitação (IMRea). Juntos, ocupam uma área de 600 mil metros quadrados no coração da capital paulista. Por ali circulam cerca de 45 mil pessoas por dia — metade das quais é formada por médicos, enfermeiros, técnicos e outros profissionais. Se fosse um município, o HC teria mais habitantes que 75% dos existentes no Estado de São Paulo.
A pouco mais de quatro quilômetros dali está localizado o Instituto Perdizes, inaugurado em novembro de 2022, especializado no tratamento de dependentes de drogas e álcool, em cuidados e na transição de cuidados — como é chamado o período em que o paciente recebe alta hospitalar, mas ainda não pode voltar para casa. Nos próximos anos, serão inaugurados dois novos institutos, que prometem desafogar áreas atualmente sobrecarregadas. O instituto Dr. Ovídio de Campos será voltado para as especialidades de oftalmologia, otorrinolaringologia, bucomaxilo e cabeça e pescoço. O segundo, chamado Centro de Pesquisas Clínicas, será dedicado ao recrutamento e acompanhamento de pacientes para estudos clínicos.
Número 1 no ranking dos hospitais públicos do país, o HC também figura entre os 200 melhores hospitais do mundo. São 40 mil equipamentos eletromédicos de apoio ao diagnóstico, monitoramento e tratamento, que servem a 114 salas cirúrgicas, onde são feitas quase 40 mil cirurgias por ano — parte delas com o uso de um dos dois robôs de última geração presentes no complexo. Um deles é o Da Vinci X, que está entre os mais precisos, ágeis e seguros do mercado.
Para ser considerado de grande porte, um hospital precisa ter mais de 150 leitos. O HC tem quase 2.700. O número é superior à quantidade total de leitos disponíveis em seis capitais brasileiras: Rio Branco (1.200), Boa Vista (1.398), Macapá (1.478), Palmas (1.623), Florianópolis (2.394) e Porto Velho (2.621). Só neste ano, foram inaugurados 264 novos quartos no complexo sem que fosse necessário erguer um único tijolo. Bastou a reativação de leitos que permaneciam fechados por diferentes motivos.
“É como se tivéssemos construído um novo hospital”, compara Antonio José Rodrigues Pereira, o “Tomze”, superintendente do HC desde 2014. Ele explica que isso só foi possível graças ao aumento da tabela SUS paulista — que determina o valor repassado pelo Estado ao hospital por algum procedimento. Há mais de uma década, o governo não fazia sequer o reajuste dos preços de acordo com a inflação.
Outra mudança alterou a forma do repasse. “Antes, era como se ganhássemos uma mesada, independentemente da qualidade do serviço prestado”, explica Eloisa Bonfá, que em 2022 se tornou a primeira mulher a assumir a direção da Faculdade de Medicina do HC em 110 anos de história. “Agora, temos metas claras e recebemos de acordo com a entrega. Quem produz mais ou faz os procedimentos mais complexos, recebe mais e pode reinvestir o dinheiro”.
Todo ano, cerca de 1,1 mil alunos se matriculam nos cursos de medicina, fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional da Faculdade de Medicina da USP. Outros 1,8 mil ingressam nos programas de residência médica e mais de 3,3 mil começam os cursos de mestrado e doutorado — disponíveis também para estudantes formados por outras universidades.
Um dos grandes diferenciais dessa instituição de ensino é que os professores de determinadas disciplinas — radiologia ou fonoaudiologia, por exemplo — geralmente chefiam a mesma área dentro do hospital. “Essa sinergia é um dos motivos que faz do HC um expoente da medicina”, explica Tomze. “Uma boa faculdade precisa ter um bom hospital, e um bom hospital precisa ter uma boa faculdade. Esse é um dos grandes problemas do ensino médico no Brasil. Não adianta existir uma faculdade se não existir local para o treinamento do estudante. Muitos médicos se formam sem nunca terem atendido um paciente”.
A Faculdade de Medicina da USP é uma usina de talentos. Alguns permanecem na instituição, outros seguem para hospitais e clínicas espalhados pelo país. A retenção desses profissionais é um dos grandes desafios enfrentados pelo HC. “Em média, todos os meses saem 2% dos funcionários”, conta William Carlos Nahas, presidente do Conselho Diretor do Icesp. “A gente às vezes se aborrece, pergunta-se por que alguém tão bom está indo embora. Mas não é fácil competir com a iniciativa privada. A vantagem é que somos um nascedouro permanente”.
Daqui a pouco haverá mais um obstáculo a ser enfrentado. Assim como fez o Albert Einstein, alguns dos melhores hospitais privados de São Paulo planejam abrir cursos universitários. Entre eles, estão o Sírio Libanês, a Beneficência Portuguesa e a Rede D’or. “Hoje, nossos médicos trabalham aqui pela manhã, dão aulas e, à tarde, atendem num consultório ou em algum hospital privado”, relata Eloísa Bonfá. “Daqui a pouco, eles estarão estudando, dando aulas e atendendo lá. Existe um risco muito grande de perdermos nossos talentos. É preciso fazer algo já, nesta janela de tempo, antes que essas faculdades sejam abertas”.
A construção do Centro de Pesquisas é um dos atrativos para a retenção de bons profissionais. É também uma forma de remunerá-los melhor. “Se a pessoa estiver fazendo pesquisa clínica e dando aulas, além de trabalhar no hospital, é possível melhorar a remuneração e fazer com que fique mais tempo no HC”, afirma Eloísa. Nahas explica que o investimento em novas tecnologias, como o Da Vinci X, é outro diferencial positivo, uma vez que os residentes têm a oportunidade de se capacitar em cirurgia robótica.
Atendimentos de urgência
Embora muitos paulistanos saibam, o pronto-socorro do HC não funciona como em outros hospitais, em que basta chegar, ficar na fila e ser atendido. A maior parte dos pacientes chega com as ambulâncias do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) ou com o helicóptero Águia, da Polícia Militar. Nesses dois exemplos, os casos invariavelmente envolvem acidentes graves. São 135 mil atendimentos de urgência e emergência por ano, o que equivale a mais de 500 por dia. Ou 20 por hora.
“Não é possível ter o pronto-socorro aberto num hospital como o HC, porque nós lidamos com casos muito graves e de alta complexidade”, explica Tomze. “Se alguém vem para cá porque torceu o pé, está ocupando a vaga de quem realmente precisa, que sofreu um AVC ou um acidente grave”. O HC é responsável por 35% de todos os atendimentos de alta complexidade da cidade de São Paulo, 15% do Estado e 5% do Brasil.
A outra forma de ser atendido pelo HC é pelo Sistema Cross — uma fila única organizada pelo Estado, que faz a triagem e encaminha os pacientes do SUS a um dos diversos hospitais de São Paulo. Para ser atendido no Icesp, por exemplo, o paciente precisa ter sido diagnosticado com câncer, o que costuma acontecer nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) os Ambulatórios Médicos de Especialidades (AMEs). Com isso, ele já chega ao instituto pronto para iniciar o tratamento.
Uma verdadeira loteria
Um dos problemas é que conseguir uma vaga no HC é como ganhar na loteria. A realidade ali é bem diferente da imagem que a maioria da população tem dos hospitais públicos do Brasil. Não existem pacientes em macas pelos corredores. Os quartos, embora duplos e sem cama extra para acompanhantes, não deixam a desejar a nenhum hospital privado da cidade. Todos têm banheiro privativo. A limpeza e os equipamentos são exemplares. Mas nada é tão impressionante quanto os cuidados dispensados pela equipe de médicos e enfermeiros.
Uma dessas “sorteadas” foi a personal trainer Nádia dos Santos, de 34 anos, que começou no Icesp em julho de 2024. Diagnosticada com um tumor raro, na última fase do tratamento, ela precisou fazer quimioterapia cinco dias por semana. Às terças e quintas, a sessão durava 12 horas ininterruptas. Às segundas, quartas e sextas, de seis a sete horas. “O melhor do Icesp é o atendimento”, comove-se Nádia. “Não só o que recebi da minha médica, mas de toda a equipe de enfermagem. Eu me sinto abraçada. Eles me tratam com muito carinho”.
O HC realiza 1,4 milhão de consultas ambulatoriais por ano, distribui gratuitamente 15 milhões de medicamentos e faz 1 milhão de exames de imagem e 12 milhões de exames laboratoriais — a maioria no laboratório 100% automatizado que fica dentro do Instituto Central, o mais antigo do complexo. Daí surgiu o nome Hospital das Clínicas: cada andar deste edifício abriga uma especialidade médica diferente. Ou seja, uma “clínica”.
Com um orçamento anual de R$ 3 bilhões no Estado de São Paulo, o HC só perde em recursos para quatro municípios: além da capital, Guarulhos, Campinas e São Bernardo do Campo. Neste hospital-cidade, são consumidos 70 milhões de kWh de energia elétrica por ano — o suficiente para abastecer 110 mil pessoas pelo mesmo período — e 1,9 milhões de metros cúbicos de água, o equivalente ao consumo de 35 mil habitantes.
Embora elevado, o orçamento não é suficiente. Para ampliar o caixa, o HC procura parcerias com empresas e instituições privadas. O HCX, por exemplo, é uma escola de capacitação onde são treinados médicos e técnicos de fora da instituição. “Esses estudantes ficam com nossos residentes na sala, ajudam a fazer consultas, visitam pacientes, participam de discussões de caso, aprendem na prática. São 40 horas semanais durante quatro semanas. Para isso, cobramos um valor semelhante ao de uma mensalidade de escola médica, cerca de R$ 8,5 mil”. Algumas vagas são gratuitas. O total arrecadado é usado tanto para ajudar os alunos de baixa renda da universidade quanto para que a área que recebeu o estudante use na retenção e atração de talentos de graduação.
Pandemia e telemedicina
Durante a pandemia de coronavírus, o papel do Hospital das Clínicas foi vital. “Atendemos mais de 15 mil casos, sendo que 80% deles precisaram ficar na UTI”, lembra Tomze. “Podemos dizer com orgulho que ninguém morreu na porta do HC”. Da noite para o dia, o hospital montou uma verdadeira operação de guerra para conseguir dar conta da demanda. Os 100 leitos de UTI foram multiplicados por três. Como sempre, quem era encaminhado ao HC já vinha classificado como paciente grave. Naquele momento, o hospital também passou a prestar assistência remota para a intubação de pacientes internados em UTIs espalhadas por diversos locais do país.
Atendimentos à distância, como esse, são cada vez mais aperfeiçoados pela instituição. Um dos projetos de saúde digital e telemedicina está voltado para o sistema penitenciário. Segundo Giovanni Cerri, presidente do Núcleo de Inovação do HC (Inova-HC), 90% desses casos podem ser resolvidos à distância. Assim, é possível economizar, por preso, algo entre R$ 1,8 mil e R$ 2,5 mil com custos que englobam a mobilização de um camburão e de escolta para levar o detento até o hospital.
Outro projeto atende populações que moram em áreas de difícil acesso da Amazônia. “Um dos problemas das mulheres indígenas grávidas é a dificuldade de se fazer um ultrassom”, conta Tomze. “Mandamos um técnico de enfermagem até o local levando um equipamento pequeno, portátil, com uma probe de ultrassom acoplada. As imagens eram analisadas em tempo real por médicos que estavam no HC. Em quase 100% dos casos, as mulheres estavam bem e não precisavam se deslocar. As outras poucas eram encaminhadas para hospitais em Belém ou Santarém, que ficam a mais de cinco horas de distância.”
O HC também abriga um hub de inovação que hoje conta com cerca de 45 startups instaladas numa área de 900 metros quadrados dentro do complexo. Estão lá para desenvolver projetos que viabilizam, facilitam e fomentam novos produtos, serviços e sistemas, além de novos negócios que resolvam as necessidades do hospital e do sistema de saúde como um todo, seja público ou privado. “A ideia é usar a tecnologia para resolver problemas”, resume Luciana Lischewski-Mattar, head de Inovação do HC.
Ela dá um exemplo: no começo da pandemia, quando ainda não havia exames rápidos, um grave problema era diagnosticar pacientes que realmente estavam com covid-19. O HC lançou um edital procurando startups que oferecessem soluções para esse desafio. Mais de 200 empresas se candidataram. Um rigoroso processo seletivo escolheu a mais promissora. “A escolhida tinha um algoritmo de inteligência artificial que fazia a leitura das imagens de radiografia e de tomografia de pulmão dos pacientes investigados”, relata Luciana. “O algoritmo fazia a detecção, calculava a probabilidade de ser realmente um caso de covid e ainda fazia uma mensuração do quanto daquele pulmão tinha sido acometido”.
“É uma relação de ganha-ganha”, explica Luciana. As startups criam soluções e o HC, além de avaliar o que serve ou não, ainda fornece as condições para que a tecnologia seja testada na prática. “É uma troca de conhecimento”, diz. A inovação, aliás, faz parte da história do HC. Em 1968, o hospital realizou o primeiro transplante de coração do Brasil. Vinte anos depois, foi o pioneiro no mundo do transplante intervivos de fígado. E, em 2016, fez o primeiro transplante de útero da América Latina.
Ao lado do ensino e da pesquisa, a inovação completa o tripé que torna o HC uma instituição de referência internacional e um dos raros locais em que o dinheiro dos pagadores de impostos é bem aplicado. São algumas das razões que induzem médicos como Carlos Nahas e Edivaldo Massazo Utiyama a permanecer na instituição desde a formatura na Faculdade de Medicina da USP, décadas atrás. “É uma sensação de pertencimento”, descreve Nahas. Ele recorre a um argumento divertido: “Conhece aquela história da cachaça? Você gosta e toma uma pinguinha. A minha cachaça é o HC. Diz a minha mulher que eu estou virando alcoólatra”.
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