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Portal O Globo - Rio de Janeiro/RJ

Publicado em 22/06/2025 - 10:40 / Clipado em 23/06/2025 - 10:40

Setor de saúde privada começa a testar compartilhamento de dados de pacientes


Projeto liderado pelo InovaHC busca colocar em prática a integração de informações, a partir do aval do usuário, para facilitar atendimento em diferentes instituições


Por Letícia Lopes — Rio de Janeiro


Imagine passar por uma emergência médica durante uma viagem a outro estado, longe de casa. No pronto-socorro, em vez de precisar avisar sobre alergias, medicamentos de uso contínuo ou o histórico — como uma cirurgia recente ou um tratamento em curso —, você autoriza e o médico consulta seu prontuário completo, agilizando o atendimento. Esse é o cenário que se desenha num projeto que reúne diferentes hospitais privados, laboratórios e operadoras de planos de saúde, sob liderança do InovaHC, núcleo de inovação tecnológica do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (HC-USP).

Hoje, a maior parte dos hospitais e laboratórios particulares é digitalizada, com toda a jornada do paciente alimentando um sistema interno de informações. Agora, a ideia é testar a interoperabilidade, ou seja, uma integração dos dados de saúde que permita o acesso de profissionais de diferentes instituições, a partir da autorização prévia do usuário.

Para isso, as informações precisam seguir os mesmos protocolos e padrões, explica o diretor executivo do InovaHC, Marco Bego. A iniciativa se inspira na experiência do open finance, que permitiu a padronização e compartilhamento de dados entre bancos e instituições financeiras, com o aval do consumidor.


Prontuário compartilhado

Por enquanto, hospitais como Sírio-Libanês, Beneficência Portuguesa de São Paulo e Oswaldo Cruz e as redes diagnósticas Dasa, Fleury e Sabin estão em fase final de negociação para o primeiro teste do projeto, previsto para ser colocado no ar em até 120 dias. Também há conversas com outras empresas.

Bego argumenta que a interoperabilidade na saúde, com a ideia de um prontuário compartilhado, “é uma pauta do setor há anos”.

Ele lembra que o HC levou para comunidades indígenas do Alto Xingu, na região amazônica, um projeto de atendimento remoto a partir de aparelhos de ultrassonografia portáteis, mas a iniciativa se deparou com entraves de compartilhamento dos laudos: quando algo era diagnosticado, o paciente tinha que entrar de novo na fila do SUS porque os dados não se comunicavam.

— Queremos que os hospitais tenham acesso às informações para oferecer um atendimento melhor. Você vai a um pronto-socorro hoje e os médicos não sabem quem você é. Com a interoperabilidade, vão saber se você tem alergias, se há algum histórico que se ligue ao problema atual, exames que foram feitos recentemente... Mais bem informado sobre o paciente, a conduta a ser adotada pelo profissional é escolhida de maneira mais eficiente — justifica Bego.

A Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp) também participa das discussões. Antônio Britto, diretor executivo da entidade, defende que os sistemas público e privado de saúde no país estão atrasados no tema e que grande parte dos desperdícios acontece por falta de melhor uso dos dados, “que existem, mas não são integrados”:

— Não há cenário em que se melhore a assistência e que se reduzam as despesas que não parta de avaliar o histórico das pessoas. Toda vez que alguém vai ao médico, tudo começa de novo. Isso faz o paciente e o profissional perderem tempo e o hospital e a operadora de plano de saúde desperdiçarem recursos.


Sus já tem plataforma

Diretor de Inovação e Saúde Populacional do Sírio-Libanês, Daniel Greca, acredita que o projeto pode ampliar a eficiência dos atendimentos e do sistema de saúde, auxiliando na redução de custos, mas que o teste do projeto-piloto será fundamental para validar esses objetivos e “criar modelo de negócio escalável” para diferentes perfis de instituições:

— Se os players não se conversam, se o dado não trafega, há muita dificuldade em trabalhar como um sistema. Com dados devidamente protegidos, a interoperabilidade permite entender a jornada do paciente, fazer intervenções corretas, evitar redundâncias. Isso não vale apenas para os hospitais, mas para todos os níveis assistenciais. Traz eficiência e, consequentemente, reduz custos.

O projeto é acompanhado de perto pelo Ministério da Saúde. A secretária de Informação e Saúde Digital da pasta, Ana Estela Haddad, destaca que o SUS já tem uma plataforma de interoperabilidade. Dados de municípios, estados e instituições federais são compartilhados na Rede Nacional de Dados em Saúde (RNDS), que os armazena no padrão recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para a troca de dados em saúde.

Ela afirma que vê na iniciativa do Hospital das Clínicas da USP uma espécie de hub do que pode se tornar, no futuro, uma ponte para a troca de dados entre a saúde pública e privada do país.

— Se pudermos adotar uma plataforma comum, todo o setor vai ganhar muito, mas principalmente o paciente, que vai ter seu prontuário e histórico à disposição para acompanhar a própria saúde e tomar decisões. E ganha também o profissional de saúde no contexto de atendimento desse paciente — diz Ana Estela.

Além dos hospitais, a rede de farmácias RD, dos selos Raia e Drogasil, e a Bradesco Saúde, também estão em reta final de negociação para participar do piloto. Conselheira do InovaHC, Marcia Ogawa argumenta que as drogarias compartilhariam dados como testes rápidos e vacinas aplicadas nas lojas.

Já no caso das operadoras, ela defende que o projeto pode agilizar autorizações de procedimentos e facilitar o calendário de pagamentos aos hospitais, reduzindo as chamadas glosas — quando o pagamento é retido por divergência entre o prestador e o plano de saúde.

A Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) informou que, na saúde suplementar, os dados assistenciais são enviados pelas operadoras para a ANS, por meio do Padrão de Troca de Informações da Saúde Suplementar (Padrão Tiss). Segundo a agência, a “interoperabilidade de dados e informações é elemento essencial no ecossistema da saúde, pois contribui para o uso mais eficiente de recursos e redução de desperdícios”.


Risco e proteção de dados

Coordenadora do programa de Saúde do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Marina Paullelli, avalia que o projeto pode potencializar a gestão e o acesso à saúde, mas que se cuidados com o uso dos dados não forem respeitados, há riscos de práticas abusivas e discriminatórias.

Ela defende que as informações sejam usadas estritamente no contexto do atendimento médico, sempre sob autorização do paciente, ou por interesse público, como pelos gestores municipais, estaduais e federais para a elaboração de políticas públicas.

— As informações não podem ser usadas para a criação de publicidade personalizada, nem para seleção de risco. Nenhum consumidor pode ser impedido, por exemplo, de contratar um plano de saúde ou acessar um atendimento por causa do seu histórico de saúde — afirma. — Há de se ter sempre consentimento qualificado da pessoa, que precisa entender as razões para o acesso aos dados.


A possibilidade de uso de dados para barreira de acesso aos planos de saúde é também uma preocupação da secretária Ana Estela. Ela defende que, em qualquer cenário, os donos das informações são os usuários, que precisam entender de maneira clara o que será acessado, para quê e por quem:

— Quem vai acessar os dados é o usuário e o profissional na hora do atendimento. Esse é o princípio a ser respeitado. O propósito do uso das informações é o cuidado e a qualidade do atendimento.

Professora do FGVSaúde, Ana Maria Malik também pondera que é preciso cautela.


— A ideia é fenomenal porque integra diferentes atores do setor privado, e não apenas operadoras de planos de saúde. O ponto de atenção, porém, é o cuidado para que os dados das pessoas não sejam usados para bloquear o acesso aos convênios nem que sejam acessados pelas empresas empregadoras, que podem evitar contratações pelo histórico de saúde — analisa.

Marina, do Idec, destaca que a regulamentação da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) sobre uso de informações privadas em saúde não avançou. Ela defende que um sistema de interoperabilidade armazene dados pelo Cartão Nacional de Saúde (CNS), como forma de resguardar a triangulação do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) com outras bases. Além disso, ela defende que sejam respeitadas garantias da LGPD, permitindo que a edição, correção ou exclusão de dados possa ser solicitada a qualquer momento.

 

https://oglobo.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2025/06/22/setor-de-saude-privada-comeca-a-testar-compartilhamento-de-dados-de-pacientes.ghtml

 

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