
Publicado em 18/06/2025 - 09:36 / Clipado em 18/06/2025 - 09:36
Projeto com agentes de saúde reduz em 50% diagnósticos tardios de câncer de mama
Cláudia Collucci
Resultados de estudo inédito em município de Goiás foram apresentados em congresso americano de oncologia
Quando fez um treinamento sobre como apalpar as mamas de mulheres em busca de eventuais nódulos, em agosto de 2022, a agente comunitária de saúde Laillyanne Luiza, 43, de Itaberaí (GO), sentiu-se receosa. "A gente visita as casas, fala de saúde, mas toque de mama eu nunca tinha feito. Fui com medo, mas fui."
A reação das mulheres logo a tranquilizou. "A gente se conhece há muito tempo, então, elas confiam, se sentem seguras. Temos um elo de amizade. Muitas nunca tinham feito o autoexame de mama", conta a agente, que atua em uma equipe de saúde da família há sete anos.
Laillyanne integra uma iniciativa inédita que reúne agentes comunitários de saúde, uso de aplicativos e mudanças de fluxos na gestão municipal e que foi capaz de reduzir em 50% os diagnósticos tardios de câncer de mama no município goiano.
Os resultados preliminares do projeto foram mensurados em estudo clínico e apresentados no congresso da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (Asco, na sigla em inglês), realizado no início deste mês em Chicago (EUA). O trabalho ainda está em andamento.
O ensaio clínico analisou dois grupos de mulheres e comparou as atuais recomendações do Ministério da Saúde para rastreamento do câncer de mama com uma nova proposta de ações combinadas, executadas por profissionais da UFG (Universidade Federal de Goiás) e do município de Itaberaí (a 92 km de Goiânia).
De acordo com os primeiros resultados do estudo, no grupo controle, que seguiu as recomendações do ministério, 60% dos casos de câncer estavam em estágios avançados (3 e 4). Já no grupo em que houve a intervenção, a taxa foi de 30%.
Entre os critérios para a inclusão no estudo estavam a mulher ter mais de 40 anos, nunca ter tido um diagnóstico de câncer de mama e já ser acompanhada por um agente de saúde.
No grupo controle, as agentes de saúde foram treinadas a orientar mulheres de 50 a 69 anos a ir ao posto de saúde e fazer uma mamografia a cada dois anos. Ou, se sentir alguma coisa na mama antes disso, procurar imediatamente a unidade básica de saúde.
No grupo intervenção, as agentes receberam treinamento para fazer o exame físico da mama na casa das mulheres. "Todos os agentes já têm na mão um palmtop, com um dispositivo do Ministério da Saúde, e isso facilitou muito", diz o oncologista Ruffo Freitas Júnior, professor da UFG e idealizador do projeto.
No palmtop, os agentes dispõem de duas ferramentas eletrônicas: os aplicativos Rosa e RosaWatch. No primeiro são inseridas todas as informações da mulher examinada. Se houver alguma alteração no exame físico da mama, por meio do aplicativo é agendada uma consulta médica na unidade de saúde.
A agente de saúde Laillyanne conta ter encaminhado após o toque duas mulheres com suspeitas de tumor de mama, que não foram confirmados pelos exames complementares. "As mulheres nunca têm tempo de cuidar delas. Mas muitas mudam de atitude após a nossa orientação."
De acordo com Freitas Júnior, ao chegar à unidade de saúde a paciente já é integrada ao RosaWatch, que faz toda a navegação dentro do sistema de saúde. Ela é examinada por uma mastologista e, confirmado o nódulo, já faz o ultrassom.
"Ela não precisa mais ir para Goiânia ou para um centro maior para fazer ultrassom. Naquela unidade ela já faz. Se tem o nódulo, já faz uma biópsia ali mesmo. Esse material vai para o exame anatomopatológico para saber o que é. Só aí é que ela vai fazer mamografia."
Segundo ele, a estratégia se mostrou eficaz em reduzir o tempo que a mulher gastava para fazer a mamografia, esperar o resultado e só então ser submetida à biópsia da mama. A proposta é que, caso confirmado o câncer, o tratamento seja iniciado em até 30 dias.
O investimento envolveu a compra de um aparelho de ultrassom e o treinamento das agentes para o exame físico e de médicos para fazer a biópsia. "O resto foi aproveitado do que a cidade já tem de capacidade. Esse é o grande diferencial. Baixa tecnologia, treinamento, organização do fluxo de pacientes dentro do sistema de saúde. Não tem nenhuma tecnologia de ponta."
Freitas Júnior diz que a ideia do projeto surgiu diante do cenário desolador do câncer de mama no SUS: em média, 54% dos tumores são descobertos em estágios avançados (3 e 4).
"É uma situação caótica: 1 em cada 2 brasileiras tem diagnóstico de câncer de mama em estágio 3 e 4. Em alguns lugares, como no meu estado [Goiás], essa taxa chega a 72%", diz o médico, associado da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica.
Segundo ele, há também gargalos no acesso ao tratamento oncológico, que começa com atraso em cerca de 60% dos casos. "Nada mudou na última década. Independentemente de qual governo fosse, Lula, Dilma, Temer, Bolsonaro, pré-pandemia, pós-pandemia, não houve nenhuma mudança estrutural que tenha melhorado essa questão."
O oncologista diz ter se inspirado em uma experiência indiana para desenhar o projeto goiano, com apoio do promotor de Justiça Paulo Henrique Otoni. A Prefeitura de Itaberaí encampou a ideia, e a Câmara aprovou uma lei municipal com dotação orçamentária (R$ 400 mil por ano).
A opção por executar o projeto por meio de um estudo clínico nível 1, o mais alto nível de evidência, foi para evitar questionamentos dos conselhos médicos sobre o treinamento de agentes comunitários para examinar as mamas de mulheres, afirma o médico.
Freitas Júnior reforça que o modelo é facilmente replicável em outros municípios brasileiros. "Todas as cidades têm agentes comunitários de saúde. As ferramentas são públicas e podem ser utilizadas, com a vantagem de já terem sido testadas e [tendo] mostrado os benefícios."
Segundo Angélica Nogueira, presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, há importantes revoluções terapêuticas para o controle do câncer, mas ainda não existe nenhuma estratégia que seja superior ao diagnóstico precoce.
"Em um país complexo como o nosso, é preciso priorizar estratégias como essa [de Goiás]. Não é à toa que o estudo [goiano] teve grande visibilidade no congresso. Já temos uma rede básica estruturada para fazer isso acontecer."
A médica acrescenta que o diagnóstico precoce é hoje definidor de cura e de tratamentos menos tóxicos para o paciente. "Do posto de vista dos custos, é muito mais barato para os cofres públicos tratar uma doença inicial."
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