
Publicado em 01/09/2024 - 10:28 / Clipado em 02/09/2024 - 10:28
Mais de 3 mil construções ilegais em áreas de tráfico e milícia foram demolidas desde 2021
Há duas semanas, um condomínio de 40 prédios erguidos sem licença no Complexo da Maré fo derrubado pela Secretaria de Ordem Pública
Por Luiz Ernesto Magalhães — Rio de Janeiro
Agentes da Secretaria de Ordem Pública (Seop) derrubam a marretadas, há duas semanas, um condomínio de 40 prédios erguidos sem licença no Complexo da Maré. Foram meses de planejamento até as autoridades chegarem ao empreendimento, que fica numa região dominada pelo Comando Vermelho. Investigações mostram que as construções ilegais se transformaram em mais uma fonte de renda do crime organizado, assim como a exploração de sinal de internet, a venda de botijões de gás e galões de água e o transporte alternativo. Das 4.697 demolições de apartamentos, casas e lojas feitas pela prefeitura na cidade desde 2021, 70% foram em áreas controladas por traficantes ou milicianos, o que teria causado um prejuízo de R$ 700 milhões às quadrilhas.
O cálculo das perdas leva em consideração fatores como a qualidade do material usado na obras e a área construída. Na Maré, o conjunto em fase final de construção tem uma cobertura com piscina e piso de porcelanato, que seria destinada a um chefe do tráfico. As demais unidades já estavam sendo vendidas por valores entre R$ 40 mil e R$ 80 mil, ou alugadas por cerca de R$ 1.200. Houve reação de moradores contra a ação, além de suspensão das aulas em escolas da comunidade, mas os operários mantêm o trabalho de demolição com marretas, já que máquinas não chegam com facilidade à área, que é muito adensada.
— Essa aparência de “obra pronta” serve para iludir a Justiça. Advogados costumam mostrar fotos das fachadas para alegar que os prédios estão prontos e ganhar tempo para tentar vendê-los ou alugá-los —disse o secretário municipal de Ordem Pública, Brenno Carnevale.
As operações têm o apoio de uma Força Tarefa montada pelo Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do Ministério Público do estado, criado para investigar ocupações irregulares do solo. Um dos focos da investigação é a possibilidade que essa seja uma maneira do crime organizado lavar dinheiro.
Hoje liminares impedem a prefeitura de derrubar 14 construções sem licença. Uma delas fica na Rocinha e seria de John Wallace Viana, o Johnny Bravo, chefe do tráfico na favela.
— O tráfico e a narcomilícia investem nessas construções para lavar o dinheiro da venda de drogas. É uma aposta que o poder público não consegue controlar, apenas enxuga gelo. E ainda há obras clandestinas menores controladas por laranjas — observa o antropólogo e ex-capitão da Polícia Militar do Rio, Paulo Storani, especialista em Segurança Pública.
Satélite para fiscalizar
Mais recente, a atuação na Maré ganha visibilidade, mas não é uma cena isolada. A Seop não tem uma estimativa da quantidade de construções irregulares na cidade — no asfalto ou em comunidades — que não podem ser legalizadas, porque estão em áreas de preservação ambiental ou não se enquadram nas exceções previstas na legislação urbanística. Para acelerar o trabalho de identificação dessas obras, a prefeitura tem o projeto de usar imagens de satélite a partir do próximo ano, o que ajudaria no monitoramento de áreas onde ocorrem irregularidades.
Urbanistas observam que os satélites vão substituir um programa que, por alguns anos, deu certo em comunidades. Em 1996, a prefeitura lançou os Postos de Orientação Urbanística e Social (Pousos), em que engenheiros e arquitetos davam assessoria a moradores sobre como construir seguindo regras estabelecidas para cada favela. No auge, em 2009, havia 66 unidades. Uma delas atendia à Maré e às favelas do Caju.
— O programa acabou devido à violência. Nenhum arquiteto ou engenheiro queria mais ficar nos Pousos. A tarefa deles era dizer não a alguém que não queria cumprir as regras. Se a negativa já desagrada no asfalto, imagine nas comunidades — disse o ex-secretário municipal de Planejamento Urbano Washington Fajardo.
A prefeitura confirma que o projeto está suspenso, em reformulação, e que a violência impede seu funcionamento. Ainda assim as demolições têm chegado a comunidades. Das cerca de 3.300 ações em favelas desde 2021, 511 foram em Manguinhos e no Jacarezinho. Em seguida, aparecem a Maré com 374 e a Muzema com 255. Em 2022, esse trabalho passou a ser de responsabilidade da Seop. Até então, era feito pela Secretaria municipal de Meio Ambiente.
A equipe da Seop que atua nessas operações é enxuta. São cerca de 30 pessoas, entre elas 20 operários. Mas nem sempre o grupo está completo. Muitos moram em comunidades e não podem, por questão de segurança, atuar perto de casa. A operação é sempre de risco. Na Maré, mesmo com a presença de policiais que estão acompanhando a derrubada, há bocas de fumo abertas perto do condomínio. Em abril, na Ilha da Gigoia, na Barra, um cão da raça pitbull de um morador atacou um promotor de Justiça que acompanhava o serviço. O animal foi sacrificado.
Os especialistas apontam motivos diversos para a expansão desordenada nas cidades, mas todos citam que a origem está no déficit habitacional, problema que atinge as grandes cidades. O Sindicato da Indústria da Construção Civil (Sinduscon) informou que, de 1º de janeiro de 2021 a junho de 2024, foram lançadas no Rio 28,9 mil unidades do programa Minha Casa, Minha Vida.
— Para resolver o problema no Rio, seriam necessárias 312 mil novas moradias. Essa conta inclui o déficit de 220,8 mil habitações e as unidades para substituir construções que sequer têm banheiros ou são excessivamente adensadas (mais de três pessoas por cômodo) — explicou o vice-presidente da Associação Comercial do Estado do Rio de Janeiro (ACRJ), George Nader.
Investimento de 30 anos
Ainda sem ter os dados do Censo 2022 consolidados, a associação fez essa estimativa com base em um estudo recente da Fundação João Pinheiro.
— Não há solução a curto prazo. A ACRJ estima um investimento de R$ 107,7 bilhões em 30 anos, desde que isso seja prioridade de todas as esferas de governo — afirma Nader.
Alternativas para o ordenamento das favelas foram tema de um seminário organizado em julho pelo Conselho Regional de Engenharia (Crea) e pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU). Uma das propostas discutidas foi a verticalização de parte dos imóveis que estão em comunidades ou em suas franjas. Os governos seriam responsáveis pelas obras. As construções sem elevador teriam até quatro andares. O presidente do Crea-RJ, Miguel Fernandez y Fernandez, defende a ideia:
— O modelo dos últimos anos, que investe fundamentalmente em melhorias da infraestrutura, não foi suficiente para conter o crescimento vertical das comunidades. O tráfico e as milícias estão tirando proveito disso.
Nader observou que São Paulo adotou iniciativa nessa linha com o Projeto Cingapura, em que prédios foram construídos na vizinhança de favelas.
Veículo: Online -> Portal -> Portal O Globo - Rio de Janeiro/RJ